São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997 |
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Pedro, Paulo, eu e a perua
FERNANDO BONASSI Final da tarde de quinta-feira. Avisaram-me que os vereadores votaram pelos perueiros já cadastrados. Quer dizer: os clandestinos continuam do mesmo jeito...Pego meu cartão de doador de sangue e meu RG. Como diz o Sam Shepard, a gente nunca sabe quando vão precisar dessas coisas pra reconhecerem nosso cadáver. No metrô Jabaquara, me aproximo de um ambulante. - Passa lotação aqui? - Fiscal? - Quê? - É fiscal? - Eu não. O ambulante aponta um lugar. Peruas fazem fila. Pessoas também. Chega a minha vez... Leio a placa no vidro: "Jardim Míriam - 1 Real". Entro no banco da frente. O motorista consulta o garoto que pulou pra calçada. - E aí, Pedro? - Aqui só tem gente pro Luso. - Então é Jardim Luso. O motorista olha pra mim: - Olha, a gente não vai pro Míriam, não. - Ah, não? - Não, é Luso. - Então eu vou pro Luso... Não era uma boa resposta. Mas achei que ia ser complicado explicar que eu nem era repórter, mas estava ali pra ver o que aquelas pessoas passavam... O motorista não deixa de me olhar: - O senhor tá bem? - É... Bom... Eu tô meio perdido... Continuava ruim com as respostas, mas essa o motorista relevou. Saímos com dois lugares vagos. Paramos no primeiro ponto de ônibus. Da calçada alguém pergunta: - Vai pro Luso? O garoto: - Duplamente, chefia, duplamente... Quem perguntou entra. Cai a tarde lilás. De poluição. O motorista, pra mim: - É fiscal? - Agarro meu cartão de doador: - Não, pelo amor de Deus... - Hum... Duas PMs numa esquina. O garoto: - Paulo, lá vem canetada! O motorista vira à direita. Escapa. Pergunto: - Você viu que os vereadores votaram... que os clandestinos continuam fora? - O senhor pediu autorização pra nascer? As perguntas daquele cara também não ajudavam... - Eu não. Acho mesmo que se soubesse de umas coisas não quisesse vir... A sinceridade pode ser ridícula em certas circunstâncias... Paramos em mais um ponto. Lotação esgotada. Tornamos a partir. O motorista: - Pois então... Sabe o que vai acontecer: Uns vão ficar a pé, outros que nem eu vão morrer de fome e esses moleques aí... nem sei... Né Pedro? Pedro não responde. O barulho da Kombi não ajuda a ouvir. De noivo o motorista: - Ninguém diz, mas o que os perueiros fazem é tirar a molecada da rua, isso sim! O Pedro aí mesmo... Vivia empinando pipa. Também gostava de umas coisas que matam, sabe? Grita: - Né Pedro? Agora Pedro ouve: - Duplamente, Paulo, duplamente... Avenida da Assembléia, Cupecê, Ângelo Christiane... então paro de ler as placas. Passageiros vão pagando e desaparecendo nas esquinas. Apartamentos viram indústrias, indústrias viram barracos e, por fim, a terra de ninguém da periferia. O motorista: - Esses vereadores aí são uns irresponsáveis... Né Pedro? - Duplamente, duplamente... Chegamos. Pra frente o lixo queimado. Pra trás a parede cinza das casas de bloco escorregando dos morros. As últimas pessoas descem. Eu também. Pago. Dou dois passos. Paro. Volto: - Bom... olha Paulo... eu vou voltar lá pro Jabaquara... - O senhor tem certeza que tá bem? - Pra dizer a verdade não, mas acho que não é de hoje... Texto Anterior: Setor de transporte admite culpa por crise Próximo Texto: Lentidão de SP inibe projetos, diz arquiteto Índice |
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