São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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O reto e o curvo

ERIC ROHMER

Eu não diria que Mozart, para mim, é o maior dos músicos: Bach e Beethoven ficam na mesma altura. Mas é o mais profundo.
Isto já pode ser dito, atualmente, sem medo de cair em paradoxo. Depois do livro de Pierre Jean Jouve sobre "Don Giovanni" (1), aparecido nos anos 40, não há quem não reconheça que a ópera de Mozart atinge profundidades "shakespearianas" e que certas obras -entre as quais a mais citada, nessas últimas décadas, juntamente com o "Réquiem", é o "Quinteto em Sol Menor, K. 516"- igualam-se, em intensidade trágica, ao que de mais atormentado produziu o século 19. A cada dia que passa, descobre-se, agora, em Mozart um homem bem mais inteligente, reflexivo e sutil do que nos permitia supor sua imagem tradicional. Uma filosofia própria era cultivada por ele, cuja marca se faz sentir, indubitavelmente, na sua obra. Hoje em dia, o fato de ter pertencido a uma loja maçônica é mesmo apresentado pelos estudiosos como a chave de sua inspiração.
Tudo isto está muito bem; mas gostaria, de minha parte, de abordar uma outra profundidade, distinta da filosofia das Luzes, praticada por Mozart. Naquele fim de século 18, uma nova era do pensamento estava prestes a se abrir, enquanto as "Luzes" se aprestavam a deixar o domínio da teoria pura, pelos riscos da política e da ação. Mozart não chegou a conhecer esta nova teoria e, mesmo se tivesse conhecido, provavelmente não teria sido capaz de compreendê-la. Mas, para nossos propósitos, isto não tem a menor importância, porque vamos deixar de lado qualquer espécie de psicologismo. O ponto de vista que gostaria de assumir, aqui, não é o do pensamento real ou suposto do músico, mas sim o pensamento ou, se se preferir, a Idéia que se depreende da música: de modo geral, uma noção da arte que escapa necessariamente ao artista clássico, mas pode ser entrevista pelo moderno, transportada a um estado onde, segundo Hegel, ela "supera" a forma que o artista quer lhe dar. (...)
Barroco
Vamos nos deter um instante sobre essas palavras, "clássico" e "barroco", cuja ambiguidade habitual nos força a definir com maior precisão o sentido que lhes é dado aqui. "Barroco" é um termo problemático, especialmente na França. Ao contrário dos alemães, resistimos a empregá-lo num senso histórico. Para nós, a música de Bach, composta, é verdade, no período barroco, não tem nada de "barroca", no sentido etimológico do termo, que vem do português antigo e significa "irregular" (2). Além disso, a prática musical há dois séculos faz do autor do "Cravo Bem Temperado", acima de Mozart ou Beethoven, o nosso modelo pedagógico, padrão de referência, ou em suma: o nosso "clássico" por excelência. Será Bach que escapa à sua época, ou mais uma vez o termo "barroco" que se mostra arbitrário, mais até do que o "impressionista" atribuído a Debussy? Se se aceita a noção de descompasso entre as artes, sobre a qual falamos, será absolutamente imperativo perceber um laço entre a pintura, ou a arquitetura dos séculos 17 e 18 e a música?
Neste ponto, mesmo correndo o risco de me contradizer, eu afirmaria que sim, porque não estamos examinando a questão do ponto de vista da maturidade das obras e da Idéia que as sustenta, mas daquele, mais superficial, da moda; isto é, da língua e retórica próprias de uma época, das quais todos os artistas, grandes ou pequenos, devem obrigatoriamente se servir. Montaigne e Proust, por maior que seja a originalidade genial de seus respectivos estilos, não podem se furtar a falar a língua de seu tempo. O mesmo ocorre com os pintores e músicos, e existe um vínculo, superficial talvez, mas verdadeiro, entre as diversas formas de expressão numa dada época. O apreço de um tempo, digamos, pelos ornamentos, é um apreço que se estende por todos os domínios, da poesia ao mobiliário e às roupas. Do mesmo modo o apreço pelo despojamento, que se manifesta mais, ou menos, de acordo com a sensibilidade individual de cada artista.
Sinuosidades
O que existe, então, de substancialmente barroco na música de Johann Sebastian Bach? Não me parece tão importante fixar-se nos ornamentos -mordentes, grupetos, trinados etc.- que os intérpretes, hoje em dia, tanto respeitam, não pensando mais neles, de forma alguma, como acessórios. O espírito barroco não está só nisso: está também profundamente inserido nos meandros da linha -ou melhor, das linhas, no plural, porque é de contraponto sempre que se trata. Linhas cujo desenho, assim como na pintura da época, não é mais livre, mas, seja a imobilidade, obedece a uma unidade constante de estilo, que o obriga a dobrar, ou mudar de direção segundo as exigências de sua própria lei e não as de uma imitação fiel da natureza. Nesse universo homogêneo, só têm direito de cidadania aqueles traçados que forem capazes de se integrar ao arabesco. Isto explica porque esta música, que pode nos parecer direta, retilínea e em sua simplicidade, é constitutivamente "sinuosa".
A mudança que terá lugar, a partir de 1750, no domínio das letras e das artes, faz-se em nome da natureza e da simplicidade: um retorno à simplicidade de uma Antiguidade tal como ela era, e não deformada pela visão barroca, uma exaltação da linha reta, na arquitetura e na mobília, na pintura também. Os braços se estendem, os corpos se aprumam, os arabescos se interrompem, como nos quadros de Greuze.
Rigidez
Uma grandiloquência dessa ordem não nos parece menos artificial do que a pompa dos pintores mitológicos, os Coypel e os Natoire. Mas, para os homens da época, representava um retorno à verdade do gesto. E eles tinham, em parte, razão: suponhamos que um diretor de teatro quisesse fazer renascer, nos seus atores, os gestos e atitudes das personagens do "Retour du Fils Prodigue" ou do "Verrot"; com maior ou menor sucesso, ele certamente o conseguiria. Mas não seria capaz, com homens e mulheres de carne e osso, de "fazer" um Rubens, não mais do que um Picasso, porque o "estilo", nesses dois casos, toma liberdades com a anatomia humana que só a pintura pode. Evolução necessária, portanto, que nos levará, pelo desvio de um novo realismo, à arte moderna, mas que chega aqui à sua idade ingrata. Nessa busca do verdadeiro e do reto, não vemos, hoje, outra coisa senão a "rigidez".
Rigidez que se pode descobrir até mesmo sob o desenho gracioso do mobiliário Luís 16, onde o amaneirado dos ornamentos nos ajuda a aceitar o que há de retilíneo nas formas, guirlandas e caneluras se justapondo de um modo muito artificial, enquanto as "coquilles" Luís 15 integram-se perfeitamente à estrutura e ritmo do móvel.
Dá-se o mesmo na música. O estilo "galant", sustentado por um arcabouço de rigidez sistemática, faz-se notar pelas afetações de superfície, que não têm relação alguma com as sinuosidades opulentas da arte barroca. Esta etapa, que parece ser uma regressão, representa, na verdade, uma transição obrigatória até novos horizontes.
Até mesmo Mozart compartilha dessa rigidez. Quanto mais avança sua carreira, mais ele dá de assumi-la e mais ela lhe fará bem. As formosuras, as passagens mais arrebatadoramente bonitas de suas primeiras composições são mil vezes menos "mozartianas" do que as fórmulas sistematicamente quadradas dos últimos anos. Soa um tanto paradoxal, reconheço, falar de rigidez com referência ao compositor mais universalmente apreciado por sua graça suprema. Poderíamos trocar o termo pejorativo "rígido" por outro, mais neutro, como "retilíneo". Mas prefiro manter "rigidez" mesmo, como mantive "vulgaridade" acima. Tais virtudes negativas têm seu lugar aqui porque sublinham a modernidade de Mozart, do mesmo modo como a "falta de jeito" sublinha a de Cézanne. No domínio plástico, a propósito, essa rigidez, no extremo oposto da maleabilidade barroca, não chega a nada de verdadeiramente moderno e o neoclassicismo não atinge senão uma espécie de conforto sombrio. Na música, graças ao gênio de Haydn e sobretudo ao de Mozart, ela abre as portas de uma terceira era -clássica, mas ao mesmo tempo moderna- da música ocidental.
A sonata em lá maior
A última "Sonata para Violino e Piano", em lá maior, K. 526, me parece um dos melhores exemplos da forma magistral como Mozart trabalha, quase ao exagero, as características desse estilo novo. Uma coisa que chama a atenção desde o início é que, nessa sonata, assim como na precedente, em mi bemol, cada um dos instrumentos tem seu espaço próprio. Faço uso da palavra "espaço" num sentido metafórico. Tudo se passa como se as linhas de força do violino tendessem ao alto -um "alto" que não é necessariamente o mesmo da escala- e as outras, do espaço do piano, se estendessem num plano horizontal, e isto sem alterar o fato de que um e outro instrumento retomam os mesmos temas. Impressão que não se tem nunca com as lindas sonatas de Bach ou Haendel. No primeiro movimento da sonata de Mozart, há uma vontade evidente do violino de "furar o teto" -ou, talvez melhor, de "perfurar o céu"- à qual o piano faz eco, mas no plano da superfície.
A música barroca dá uma impressão de docilidade. Os instrumentos vão juntos. Seus caminhos, mesmo quando diferentes, acabam chegando ao mesmo objetivo. Aqui, cada qual avança em seu próprio sentido. Não se trata tanto de conflito, mas de divergência. As belas linhas paralelas de antigamente se desviam, se fragmentam, se quebram. Entramos na era do descontínuo, que guarda um lugar ao vazio. Vazio virtual, mais do que real, pois não há uma frequência maior de "silêncios". Mas o ar circula, e nós, ouvintes, não somos mais cobertos de música, como um tecido colado à pele, ou uma tapeçaria cobrindo inteiramente as quatro paredes da sala onde nos encontramos. Mantemos distância em relação à obra, entramos nela em maior ou menor profundidade, seguimos ou não as direções contrárias que ela nos indica. Em suma, nós nos pomos a pergunta: "Para onde vamos?", que não se põe com a música das eras anteriores, uma música que segue sempre, tranquilamente, em qualquer circunstância, a mesma garantida direção.
Limpeza
A pergunta nos ocorre, de modo particularmente agudo, no primeiro movimento dessa sonata, que nos transporta, com uma autoridade tal que não se deixa discutir, numa direção inversa à que se poderia esperar. Pois, em vez de construir, de empilhar pedra sobre pedra, elemento sobre elemento, ela se lança numa operação de limpeza que pode nos levar ao vazio, à não-música.
Depois de uma fileira de notas, arranjadas em sedutora falsa desordem, o que é que se vê, ou melhor, o que é que se escuta? O violino e o piano somam forças para varrer, em grandes golpes sucessivos, esse rosário de pérolas coloridas: numa sequência de frases cada vez mais simples, cada vez mais "rígidas", serão progressivamente suprimidas as ondulações graciosas do início. Estamos num processo inverso da variação ordinária, onde o tema vai se adornando e enriquecendo.
É só depois de ter desvelado o arcabouço do "Allegro", em sua simplicidade elementar, que a música poderá ter um novo início e se entregar a um "desenvolvimento" complexo e construtivo. Falamos de simplicidade. Talvez se pudesse ir mais longe, mesmo correndo o risco de parecer chocante. Mas essa música chocou mesmo os seus contemporâneos, ou pelo menos aqueles ouvidos habituados à bordadura barroca. No tema principal da sonata há um lado popular, claramente "fácil" e que fica no limite da vulgaridade. Não é, podemos dizer, muito mais refinado do que o tema de "la Carmagnole", que ressoava, mais ou menos por essa época, nas calçadas de Paris, e não tem parentesco algum com a graça inocente das danças rústicas de Bach ou Rameau.
Mas, ao mesmo tempo, é próprio dos grandes músicos -como se verá com Beethoven- não desdenhar a canção mais fácil, sobretudo se não é, como aqui, resultado da facilidade, isto é, de uma preguiça da invenção; mas, pelo contrário, o ponto final de um esforço extremamente rigoroso de ascese, de despojamento. Exala dessa frase uma impressão de pureza, não dada, mas conquistada e que não se encontra em lugar nenhum na música antes disso. Seria melhor falar de purificação. A música de Mozart não é pura: é purificadora.

Notas:
1. Pierre Jean Jouve, "Le Don Juan de Mozart", Paris, Christian Bourgois, 1986;
2. "Barroco"; pérola de superfície irregular, palavra derivada do árabe "al-cháuhar" (espanhol "ahotar") (nota dos tradutores).

Tradução de Arthur Nestrovski e Leda Tenório da Motta.

A obra:
"Ensaio sobre a Noção de Profundidade na Música - Mozart em Beethoven", de Eric Rohmer (Ed. Imago, 239 págs., R$ 21,00).

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