São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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O gênio de Glenn

CHRISTOPHER LEHMANN-HAUPT
DO "THE NYT BOOK REVIEW"

Peter F. Ostwald conheceu Glenn Gould depois de um concerto dado em San Francisco no dia 28 de fevereiro de 1957. O encontro foi típico da maneira como o pianista canadense fazia amigos, como Ostwald explica em seu novo e intrigante livro "Glenn Gould - The Ecstasy and Tragedy of Genius" (O Êxtase e a Tragédia do Gênio).
Maravilhado com a performance de Gould, Ostwald, ele próprio violinista de talento, foi ao camarim do jovem astro. Os dois passaram uma noite longa e estimulante juntos e, apesar de Ostwald sentir que Gould ao mesmo tempo desejava contato humano e queria manter-se isolado, desenvolveram uma amizade que durou duas décadas, até cinco anos antes da morte de Gould, em 1982.
Em 1989, quando foi lançado o livro (sob outros aspectos confiável) "Glenn Gould - A Life and Variations", de Otto Friedrich, Ostwald, segundo escreve, não ficou "inteiramente satisfeito com o tratamento dado por Friedrich aos aspectos médicos dos problemas de Glenn".
Na condição de professor de psiquiatria e autor de duas psicobiografias, "Schumann - The Inner Voice of Musical Genius" (A Voz Interior do Gênio Musical) e "Vaslav Nijinsky - A Leap into Madness" (Um Salto na Loucura), Ostwald resolveu "abordar Gould juntando meu conhecimento pessoal dele e dados biográficos colhidos após sua morte".
Retornando à infância de Gould, Ostwald cita uma anedota sobre o médico da família, que teria observado, referindo-se à movimentação incomum de dedos e braços do bebê: "Ou esse menino será médico, ou será pianista".
A isso Ostwald acrescenta, com um toque de sarcasmo, que Gould iria realizar as duas previsões. Além de transformar-se num dos maiores pianistas do século, procurou tornar-se "uma espécie de especialista médico" que fazia seu autodiagnóstico constantemente, consultando vários outros médicos e experimentando o uso "de remédios de todos os tipos, de maneira que o ajudou a transpor muitas crises imediatas, mas provavelmente acabou por prejudicar sua saúde, a longo prazo".
Em seu livro, Ostwald fala dessas duas carreiras de Glenn Gould. A visão que oferece de sua carreira musical é mais ou menos a rotineira: uma resenha do gosto variado e às vezes perverso de Gould em matéria de compositores, e uma visão de sua angustiada retirada das temíveis salas de concertos para os limites mais aconchegantes dos estúdios de gravação.
O que há de novo nesse âmbito é sua teoria de que a interpretação "errônea" -muitas vezes deliberada- que Gould fazia de obras familiares se devia a duas causas possíveis. Uma pode ter sido o simples desejo competitivo de distinguir-se de seus rivais e mostrar que sabia tocar melhor do que eles.
A outra talvez tenha sido sua incomum capacidade de intuir a estrutura interna de uma composição, em lugar de sua forma externa, fato que explica porque ele frequentemente ensaiava uma peça ao mesmo tempo que mascarava seu som com o ruído de um aspirador de pó ou rádio ligados. Quando um compositor se queixou de que Gould havia soterrado a melodia de sua peça em suas notas acompanhantes, o pianista respondeu: "Você não compreende sua própria música".
O retrato que Ostwald traça de Gould como médico que tentava fazer seu próprio diagnóstico é fascinante. Segundo Ostwald, o pianista era espantosamente neurótico, fóbico em relação a micróbios, contato humano, ar frio e toda espécie de doenças, que, segundo imaginava, constantemente ameaçavam contagiá-lo.
Na medida em que o autor oferece alguma explicação, ela é edipiana. Gould rechaçava seu pai severo devido à repugnância que lhe despertavam os animais mortos necessários para a empresa familiar, de casacos de pele. Nunca escapou da presença de sua mãe envolvente, cuja cama compartilhou até a adolescência. Ele internalizou as críticas que ela fazia a seu desempenho no piano e as projetou sobre as platéias das salas de concerto, que terminou por odiar.
Ostwald dá a entender que o bem-estar de Gould já se viu ameaçado desde cedo na vida, especulando que os movimentos incomuns de seus braços e dedos, na primeira infância, possam ter sido um sintoma da doença de Asperger, "uma variante do autismo". Em última análise, porém, o autor nos deixa a sensação de que Gould refletiu uma espécie de eficiência perversa da natureza. Seu gênio suscitou seu lado grotesco, que, por sua vez, foi responsável por seu gênio.
A única falha desse retrato é que ele revela muito pouco do Glenn Gould que foi tão brilhante em todas suas facetas, desde seu humor irônico no conversar até sua mania compulsiva de representar papéis de maneira cômica, interpretada pelo autor como a maneira utilizada por Gould para dissipar a hostilidade às vezes quase assassina que sentia em relação às pessoas.
É claro que tais problemas narrativos poderiam ter sido resolvidos se o autor não estivesse lutando contra um câncer em fase terminal enquanto escrevia a biografia.
Mesmo assim, apesar da brevidade e excentricidade da carreira de Glenn Gould, ele conseguiu deixar uma marca indelével no mundo. "O que Glenn nunca pareceu ser capaz de perceber ou admitir conscientemente era seu próprio espírito de competitividade extrema", escreve o autor.
Esta psicobiografia instigante mostra a maneira contraditória como Glenn Gould construiu sua lenda notável. Ao mesmo tempo, aprofunda o mistério em torno de sua genialidade própria.

Tradução de Clara Allain.

Onde encomendar:
"Glenn Gould - The Ecstasy and Tragedy of Genius", de Peter F. Ostwald (W.W. Norton & Co., 368 págs., US$ 29,95), pode ser encomendado, em SP, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e, no Rio, à Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel. 021/294-5994).

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