São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
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Dobre de finados pelo latifúndio

RAUL JUNGMANN

O maior significado que o novo Imposto Territorial Rural carrega é o de sinalizar o fim do bloqueio político à reforma agrária. Seu reverso é que a efetivação do novo imposto representa uma derrota do latifúndio -doravante politicamente liquidado, ainda que perdurem seus efeitos perversos nos locais onde mantém posições de mando. Na anatomia dessa derrota, porém, encontram-se outras causas e explicações. Primeiro, a desideologização da questão agrária, na esteira do fim do conflito leste/oeste. Antes, reforma agrária era sinônimo -ou ante-sala- de socialismo. Não esqueçamos: foi em nome de impedi-la que João Goulart foi apeado do governo em 1964. Hoje, o toque de reunir do passado, que juntava setores produtivos ou modernos com o latifúndio, perdeu eficácia. As pautas jamais tornarão a se unificar ideologicamente, pois a divisão é irreconciliável e baseada em interesses distintos. Se o setor latifundiário continua a defender privilégios, concentração e especulação de terras, os produtores se preocupam mais com crédito, tecnologia, mercados e globalização.
Segundo: o Real opera a proeza de derrubar os preços da terra em todo o país em mais de 50%, em média. Manter estoques de ativos como ouro, dólar ou terra passa a dar prejuízo e já não encontra justificativa na superinflação. Complementarmente, deixaram de estar disponíveis os gordos e, muitas vezes, obscuros incentivos fiscais para projetos agropecuários na Amazônia e no Nordeste, alavancados pela posse de grandes extensões de terra amiúde tomadas de humildes posseiros.
No plano das instituições, a consolidação democrática possibilitou a organização de trabalhadores sem terra, posseiros, pequenos agricultores e produtores rurais, com os quais se articula uma opinião pública intransigente no apoio à reforma agrária, na expectativa de minorar a crise urbana e encon trar solução para a secular violência rural, que a todos agride moral e eticamente. Tudo teve seu peso na hora da verdade no Congresso, reunindo setores liberais e de esquerda que, somados ao patronato rural moderno, isolaram e derrotaram o latifúndio com a aprovação do novo ITR. Estava aberta a via de acesso do Estado às sesmarias de ontem, grandes extensões improdutivas de hoje, pela cobrança de impostos. Nessas circunstâncias, o novo ITR terá aspectos diferenciais em relação às legislações anteriores. A partir de sua efetivação, o valor declarado da terra será tomado como limite em caso de desapropriação para a reforma agrária. Ou seja: a burla de usar dois valores -um para baixo, visando o ITR, e outro para cima, na desapropriação- acabou de uma vez por todas. Vale, em ambos os casos, o preço de mercado. Com o cálculo feito pelo contribuinte, e não mais pela Receita, o ônus da prestação de informações fidedignas é de quem declara. Torna-se inviável a prática anterior de contestar os valores apurados e nada recolher aos cofres públicos. O recolhimento se dará no ato da declaração; a iniciativa de contestar ficará a cargo da Receita.
Elaborado a seis mãos -Receita, Incra e Ibama-, o ITR será decisivo instrumento de preservação ambiental. Também a seis mãos será feita a fiscalização, que terá dois sistemas altamente sofisticados: o Landsat e o Global Position System, empregando 25 satélites. Já o cruzamento de dados entre o ITR e o Imposto de Renda, tendo como referência o valor de mercado do imóvel, torna péssimo negócio a sonegação. Além disso, as maiores e mais improdutivas propriedades cairão na alíquota de 20%; em cinco anos, o imposto devido será igual ao valor da terra.
Com tais inovações, o que se pode esperar da administração do novo imposto? De imediato, ele levará a uma nova queda no preço da terra, beneficiando os produtores e a reforma agrária. Isso induzirá, mais adiante, a uma mudança saudável no perfil fundiário, contribuindo para a desconcentração. Na área ambiental, os ganhos serão expressivos, em especial para as regiões amazônica, do Pantanal e dos cerrados -além do estímulo às áreas de preservação privada, parques e reservas. Do ponto de vista fiscal, destacam-se os benefícios com a redução da sonegação, a melhoria da arrecadação e o incremento da base tributária real. A maior lição que nos traz o novo imposto é a de que estão postas as condições para uma ruptura com o nosso passado agrário, inclusive por meio de um compromisso que reúna sem-terra, produtores, Congresso e governos em uma ampla negociação visando reduzir custos sociais, conflitos e riscos de uma reforma agrária abrangente. Se alcançarmos tal propósito, o novo ITR terá significado maior que sua implantação.

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