São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A ciência e a reforma do Estado

J. LEITE LOPES

Critica-se atualmente a universidade brasileira por falta de entrosamento com os meios de produção. Esquece-se que nos EUA foi fundamental, no fim do século passado, a intervenção de Abraham Flexner, que denunciou a mediocridade do sistema de ensino.
Seu livro "The American College" denunciava a incapacidade das escolas de desenvolver a iniciativa individual do estudante, formando-o sem o acúmulo de conhecimentos. Estes eram mal dados e mal compreendidos.
O efeito da ação de Flexner se fez sentir rapidamente. Em 1901, Andrew Carnegie, enquanto construía seu império do aço, disse que "juntar riquezas é uma das piores formas de idolatria" e decidiu consagrar-se às boas obras, sobretudo em ciência e cultura, que pudessem fazer brilhar seu nome.
Em novembro daquele ano, escreveu ao presidente Theodore Roosevelt propondo que criasse um organismo nos moldes da Smithsonian Institution -que viria a ser a Carnegie Institution-, para dar maiores possibilidades de pesquisa aos jovens competentes e facilitar o acesso dos cidadãos à ciência.
Se o governo escolhesse o terreno, ele pagaria edifícios e equipamentos com uma dotação de US$ 10 milhões (valor da época). James Smithson fizera sua doação em ouro; Carnegie ofereceu ações da U.S. Steel Corporation.
Na Primeira Guerra (1914-18), o físico Robert Millikan e seus colegas mantinham as relações do National Research Council com os militares. Não tendo tido grande êxito, a lição durável da guerra era que "ninguém contestaria o interesse econômico da pesquisa científica", segundo avaliou Edwin B. Rosa.
Elihu Root, secretário da Guerra, afirmou então que as recompensas da dominação industrial e comercial iriam para a nação que soubesse "organizar mais eficazmente suas forças científicas". Assim, homens da indústria, como John D. Rockefeller, George Eastman, Andrew Mellon, Pierre Du Pont, Vanderbilt e Stanford, estabeleceram uma verdadeira corrida para desenvolver ao máximo a educação básica, as universidades, a ciência e as artes.
No Brasil, há prazer em criticar a universidade por não oferecer resultados práticos, mas não se sabe quais industriais brasileiros jamais demonstraram interesse nela. A razão é simples: nunca foram movidos pelo espírito dos industriais americanos. Ao contrário: sendo, em geral, sócios de multinacionais, sempre se contentaram em comprar ou alugar técnicas e produtos descobertos e feitos nos laboratórios da matriz.
E o poder público, no Brasil, raramente teve a sabedoria de tomar as iniciativas corretas para universalizar e melhorar a educação básica e apoiar universidades e institutos de pesquisa.
Lembro-me dos esforços que, com Carlos Chagas e Joaquim da Costa Ribeiro, desenvolvi para estabelecer o regime de tempo integral para os professores dedicados à pesquisa na Universidade do Brasil, no Rio dos anos 50.
Havia um organismo governamental chamado Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público) que proibia esse regime -adotado na Universidade de São Paulo desde sua criação, em 1934, e razão de sua supremacia.
Foi precisamente o representante da Fundação Rockefeller, Harry M. Miller, quem nos propôs um contrato pelo qual a fundação contribuiria para estabelecer o regime na Universidade do Brasil. O contrato não teve êxito, e sei bem da falta de visão, na era atômica em que entrávamos, por parte das mais altas autoridades universitárias na época. Ora, que vemos hoje em dia, em plena era da chamada globalização?
Em primeiro lugar, o atual Mare (Ministério da Administração e da Reforma do Estado), herdeiro do Dasp, parece ter hoje funções restritivas análogas. No regime e no mundo que vivemos, afirma-se que ao Estado não cabe mais fabricar aço, buscar petróleo, cuidar das florestas e da imensa riqueza da região amazônica. Caberia a ele cuidar da segurança, da saúde, da educação.
Mas, precisamente na educação, que vemos? Resoluções do Conselho Nacional de Educação são opacas ao público, como antes; não se convocam cientistas para colaborar no aperfeiçoamento do ensino básico; e as universidades públicas continuam sob a ameaça de provisões orçamentárias restritivas.
Eminentes figuras públicas elogiam universidades privadas -e é duvidoso que o dinheiro das matrículas dos estudantes baste para o pagamento régio de reitores e professores e para o financiamento das pesquisas, sem as quais não merecem o nome de universidade.
Quanto às agências que desde sua criação, nos anos 50, financiam a pesquisa científica pura e aplicada no país -destaco o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)-, estão em andamento planos emanados do Ministério da Administração para transformá-las em organizações cujo fim não é explicitado, com obscuros protocolos de intenção.
Os institutos de pesquisa do CNPq, e talvez os demais federais, são objeto de elucubrações formuladas por técnicos do ministério, dos quais provavelmente só alguns poucos (ou nenhum) sabem como funciona um laboratório de pesquisa científica e o que é um trabalho de ciência experimental e teórica.
Corremos o risco de ser sacrificados no altar da reforma do Estado. Esperamos que Deus segure a mão de Abraão, como quando este estava prestes a sacrificar, em seu louvor, seu filho Isaac.

Texto Anterior: Dobre de finados pelo latifúndio
Próximo Texto: Patrimônio histórico; A missão; Entrevista; Imprensa; Churrasco no futebol; Promessa de Covas; Candidatura ameaçada; Saúde; Ferrovias; ISO 9002
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.