São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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O contágio da febre amarela

ROBERTO CAMPOS

O terremoto "bursátil" de Hong Kong é o terceiro susto que nos vem da Ásia. O primeiro, no começo da década, foi a bolha especulativa imobiliária do Japão, seguida de uma crise bancária, que deflagrou um longo processo recessivo, interrompendo o milagre do crescimento japonês.
O segundo foi a crise da Tailândia, que se espraiou rapidamente pela Malásia e Indonésia, atingindo o mercado de câmbio e as bolsas. Houve uma variedade de causas. Tremenda expansão do crédito imobiliário privado, crise bancária, recessão no mercado eletrônico, acirramento da competição chinesa, complicações políticas na Tailândia e Indonésia, projetos megalomaníacos na Malásia e na Indonésia.
Nada disso destrói o "milagre asiático" da ascensão de países primitivos para exportadores de produtos de alta tecnologia e redução da pobreza em velocidade inédita no mundo. Mas indica que, se esses países aprenderam a receita do "grande salto avante", não têm ainda a fórmula do "desenvolvimento sustentado".
O terceiro susto veio de origem implausível -Hong Kong. Com robustas reservas cambiais (US$ 88 bilhões), recém incorporado à China (esta, superavitária em comércio exterior e com reservas de US$ 120 bilhões), sem dívida externa e disposta a preservar o austero regime do "currency board" vinculado ao dólar e poupado de intervencionismos imprudentes de Beijing -não era de se esperar que Hong Kong se transformasse no epicentro de um terremoto.
Com sua economia de serviços (de vez que a produção industrial foi transplantada para a China continental), sofreria pouca perda de competitividade para o Sudeste Asiático, cujas moedas foram desvalorizadas. A próxima vítima do ataque parecia ser antes a Coréia do Sul, atingida por uma crise bancária no meio de um processo eleitoral e com custos trabalhistas que estão diminuindo sua competitividade, já prejudicada pela desvalorização do iene japonês.
Também intrigante foi a amplitude da reação da Bolsa de Nova York, que deflagrou uma onda baixista mundial, em descompasso com os fatores "reais" da economia. Há tempos que se esperava um reajuste técnico, após um boom de extraordinária duração e intensidade.
Havia, como disse Alan Greenspan, o presidente do Federal Reserve Board, "uma exuberância irracional". Mas o impacto da crise de Hong Kong foi rápido e desproporcional. Uma possível explicação foi a frustração de expectativa de lucros das empresas de alta tecnologia, hoje o segmento mais dinâmico da Bolsa de Nova York, que registraram o desfalecimento da procura asiática.
O contágio da "febre amarela" atingiu rapidamente o Brasil. A Bolsa de São Paulo, na terça-feira última, foi a campeã de quedas. Despencaram as ações da Telebrás e o valor dos títulos da dívida brasileira, e o BC teve de gastar reservas para defender o Real. São de esperar tremores secundários, durante alguns dias, em virtude da liquidação de posições e reestruturação de carteiras das instituições que operam nas bolsas. Não se sabe ainda até que ponto o sistema bancário será afetado.
No mundo financeiro globalizado, a avaliação do "risco soberano" dos países se torna cada vez mais uma arte sofisticada. Infelizmente, após o terremoto de Hong Kong, a percepção do risco Brasil acendeu o "pisca-pisca" do alarme.
As agências internacionais mantêm uma espécie de "check list" do desempenho. No caso brasileiro, há três pontos positivos:
- razoável sucesso na estabilização de preços;
- superação, a um custo aceitável, da crise bancária de 95/96 e interrupção da hemorragia dos bancos estaduais;
- deslanche, ainda que lento, de um robusto programa de privatizações, tanto em nível federal como estadual.
Mas há notas negativas:
- persiste um déficit global do setor público, que se aproxima do déficit nos pagamentos externos, indicando que a estabilização foi conseguida principalmente pela substituição do financiamento inflacionário pelo endividamento externo;
- não foram aprovadas as reformas estruturais -administrativa, fiscal e previdenciária. A primeira é necessária para reduzir custos; a segunda, para simplificar e racionalizar o sistema; a terceira, para corrigir injustiças, conter o déficit e preparar o terreno para uma transformação radical que substitua o sistema de repartição pelo sistema de capitalização de poupança individual.
No médio e longo prazo, a competitividade brasileira dependerá de duas outras reformas: melhoria da escolaridade da mão-de-obra e desregulamentação do "garantismo" trabalhista.
Quais as ilações a tirar e lições a aprender da crise asiática? Nossa atitude não deve ser nem a de oba-oba ("o Brasil é diferente") nem de lamúria ("a finança internacional é injusta"). A atitude deve ser de "realismo crítico".
Comecemos pela rejeição de ilações falsas. Uma delas seria retardarmos as privatizações, esperando para "vender na alta". Obter receita para o governo é apenas um dos objetivos (e talvez não o mais importante) da privatização. Os outros são: melhorar o gerenciamento e a eficiência global da economia; reorientar o investimento do governo para suas funções clássicas; atrair capitais estrangeiros; estimular o capitalismo do povo e diminuir a taxa de corrupção.
Alguns dos países bem-sucedidos e pioneiros na privatização -Inglaterra, na Europa, e Chile, na América Latina- privatizaram inicialmente a preços baixos e atraentes, para fortalecer o setor privado e evitar fracassos que provocariam reestatização.
É improvável que a crise das bolsas destrua o interesse estrangeiro nas privatizações brasileiras, pois a clientela não é basicamente constituída por especuladores de bolsa e sim por investidores que pensam no longo prazo. Mas certamente diminuirá a "exuberância" dos ágios. E devemos estar preparados para flexibilizar as condições de pagamento, ampliando inclusive a aceitação das chamadas "moedas podres" (que reduzem a dívida e aumentam a credibilidade do governo).
As únicas privatizações que podem ser adiadas são as vendas de ações minoritárias da Petrobrás e Banco do Brasil, que, por não transferirem o controle, são mais uma estatização de poupança do que privatizações autênticas.
A outra falsa ilação é exagerarmos os perigos da globalização de mercados. A globalização tem prêmios e castigos. Mas é preciso lembrar que foi somente a "liquidez" financeira trazida pela globalização que nos permitiu financiar a estabilização de preços "antes" mesmo das reformas incrementadoras da poupança interna.
A conclusão concreta e correta é de que o Brasil tem de acelerar seu processo de reformas. Em matéria fiscal, o Executivo propôs e obteve melhoramentos pontuais no Imposto de Renda, e na desoneração de exportações e investimentos, mas deve agora preparar uma reforma estrutural profunda, a ser votada logo após as eleições. A reforma administrativa deve ser concluída na Câmara (segundo turno) e enviada ao Senado. A reforma previdenciária, apesar de notoriamente insuficiente, foi melhorada no Senado e está de volta à Câmara.
Até recentemente, a atitude do Executivo era de complacência resignada: empurrar com a barriga até as eleições, usando as privatizações como "tranquilizantes" no interregno. Não há mais tempo para esperar. "Reformas já" deve ser o refrão.
A percepção internacional do "risco Brasil", segundo os índices mais conceituados na Bolsa de Nova York, é para nós humilhante. No índice "Standard & Poor's", temos o grau "B menos" - juntamente com o Paraguai, Cazaquistão, Romênia, Rússia, Jordânia e Líbano. E com cotação inferior à da Argentina, México, Índia, Filipinas e Egito!
No índice "Moody's", nossa classificação é B1, junto com Argentina, Turquia, Líbano e Equador, tendo abaixo de nós apenas o Paquistão, o Peru e a Bulgária.
Infelizmente, um dos critérios mais importantes de avaliação é a "história de insolvência". E nesse capítulo somos contumazes, pois nos últimos dez anos acumulamos três delinquências: a moratória soberana de Funaro em 1987, a moratória informal do ministro Mailson em 1989 e o confisco do Collor, em 1990! Em todos os casos, houve ruptura de contratos. E isso no capitalismo é uma forma de suicídio econômico.

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