São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Uma certa desconfiança

JANIO DE FREITAS

Como você sabe há muito tempo, por ensinamento dos que falam como governo e dos que escrevem como se fossem do governo, o real tornou o Brasil inatingível pelos estouros financeiros internacionais. Não se sabe, então, que fenômeno atingiu o país durante a semana. Nem importa saber, porque, como nos dizem os economistas, tantos oposicionistas e os jornalistas de sempre, "o governo agiu certo, fez o que devia fazer". E o que fez o governo?
Primeiro, adotou a arrogância paranóica que lhe fica muito bem, já que saiu de moda imaginar-se Napoleão. "A crise é externa, é só financeira e não atinge o real e a economia brasileira." Depois alarmou-se. Perdão, "agiu certo".
Ou seja, em 48 horas gastou por diferentes modos, para salvar o real, o que está gastando no ano com saúde ou com educação.
O Brasil é que estava protegido, mas nenhum dos países alcançados pela crise precisou adotar as medidas tomadas pelo governo. Todas, reconheçamos, coerentes com sua dedicação aos banqueiros e aos especuladores internacionais e nocivas para os brasileiros em geral.
Os "agentes financeiros" que perdiam dinheiro com a crise e não poderiam pagar, no vencimento, as compras feitas nas Bolsas foram socorridos pelo Banco Central, recomprando-lhes mais de R$ 1 bilhão em títulos que só venceriam, uns, entre abril e outubro de 98 e, outros, só em setembro de 99. O bilhão ali citado não inclui a perda, não revelada pelo BC, implícita na recompra tão antecipada.
Essas maneiras de "fazer o que devia fazer" jamais levam o governo à mesma presteza e empenho para problemas como o desemprego e a crise da pequena empresa, entre tantos outros que não explodem sobre os afortunados, mas sobre os suadores. Quando "age certo" dobrando os juros -"para evitar a fuga de capitais", como dizem os jornais- o que o governo faz é isto: embora já pagasse aos especuladores internacionais os melhores juros do mundo, acrescidos ainda do privilégio no Imposto de Renda, o governo dobrou o lucro que lhes dá. Este lucro, porém, não brota no chão, é dinheiro brasileiro, dos brasileiros, que o produzem sob todos os desestímulos governamentais, mas doado aos que aqui não trazem contribuição alguma, de nenhuma espécie, vindo só aplicar temporariamente, na ciranda financeira, um dólar para levar dez.
Ao fazer assim "o que devia fazer" para salvar o real, o governo tornou mais difícil e mais incerta a vida de que cada brasileiro não-afortunado, quer dizer, de uns 90% da população. Só em novembro, já gastará a mais, com os novos juros, entre R$ 2 bilhões e R$ 3 bilhões, cujo ônus, pelo desvio de destinação e pelo bolso de origem, recai sobre a população. E assim será a cada mês, progressivamente no montante das quantias e nos efeitos arruinantes sobre a sociedade e a economia.
"O governo agiu certo, fez o que devia fazer", ensinam os economistas, batem palmas os políticos, avalizam os meios de comunicação. O real está salvo. Maravilha. Mas com tamanho custo para um país e seu povo, qualquer moeda é, como ainda vem dizer Fernando Henrique do real, "uma muralha firme". Só que, em sendo para isso necessário tamanho custo em recursos e em sacrifícios imediatos e futuros para a economia e a sociedade, talvez o mais certo seja desconfiar de que há algo errado. Muito, grave e ameaçadoramente errado.

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