São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Os ciclistas e o Congresso ameaçam o real; Trilha sonora; CURSO MADAME NATASHA DE PIANO E PORTUGUÊS; Ser cientista é padecer no tucanato; Um passeio pelo divertido mundo dos riscos; Décio PignatarI

ELIO GASPARI

Os ciclistas e o Congresso ameaçam o real
O presidente Fernando Henrique Cardoso tem toda razão. Se o Congresso não aprovar seus projetos de reformas, terá a culpa numa eventual crise cambial que provoque o colapso do real. O presidente não disse, mas a culpa não será só do Congresso, será também dos ciclistas. Por que os ciclistas? E por que o Congresso?
Porque o Congresso, como os ciclistas, não tem nada a ver com essa história. Primeiro, não foi ele quem sobrevalorizou o real. Segundo, tem votado tudo o que o governo quer.
Para encurtar a conversa, com a palavra FFHH:
- Tenho sentido o Congresso afinado, atento e em sintonia com a vontade do país. Quando se leva ao voto, ganha-se. (Abril de 1996.)
FFHH esclarece ainda que suas propostas legislativas não têm tanto a ver com o real e com o cotidiano da administração. Com a palavra:
- Desde o começo me bati com a equipe econômica para não dar tanta ênfase à necessidade das reformas constitucionais. Elas são importantes, mas dizer que o real depende das reformas é mentira. (...) O real não depende delas. (Abril de 1997.)
Só numa ocasião FFHH jogou tudo de si para decidir rápido uma reforma constitucional. Foi em janeiro passado, quando disse:
- Nós vamos marchar para decidir essa questão. No corpo-a-corpo no Congresso, mas sobretudo na rua, com a força das ruas. (Levou, mas a reforma era a reeleição.)
Seria simples concluir que FFHH diz a coisa e seu contrário. Simples e banal.
A salada reflete uma acrobacia retórica essencial à compreensão política d'El Rey. Ele mantém no ar três laranjas. A uma chama Brasil. A outra chama de reformas. A terceira é ele. Como ele fará as reformas que mudarão o Brasil, as laranjas sobem e descem. Quando se vê numa encrenca, transforma-se no Brasil, demarca uma linha separando o bem e o mal e a chama de "as reformas". Um exemplo, da semana passada, quando o Banco Central perdeu cerca de 1O% das reservas internacionais do país:
- O Brasil está percebendo que a nossa capacidade de avançar está condicionada às reformas. (...) Não façam oposição ao Brasil, me derrotem se forem capazes, mas não usando o Brasil para ser vítima de manobras.
A defesa do real pode depender de muitas coisas, mas o diversionismo não lhe trará crédito. Festejou-se uma vitória do governo contra o que teria sido um ataque especulativo ao real, quando não há vestígio de que esse ataque tenha acontecido. FFHH diz que a sua política monetária produziu uma "muralha firme". Pode ser verdade, mas havia nessa muralha um belo portão pelo qual passaram (como não poderiam deixar de passar) perto de US$ 8 bilhões.
Em 1973, uma comandita de expoentes do pensamento liberal brasileiro conseguiu expurgar da 9ª edição da "Introdução à Economia", do prêmio Nobel Paul Samuelson, um parágrafo no qual ele dizia que o futuro da ditadura brasileira seria a bancarrota. O expurgo, feito só na edição brasileira, foi conseguido com o beneplácito de Samuelson, pela insistência do professor Eugênio Gudin. Resultado: os estudantes americanos aprenderam na versão integral que a ditadura brasileira continha riscos, enquanto os brasileiros ficaram a ver milagres até que, nove anos depois, Pindorama quebrou.
Na semana passada, o mesmo Samuelson escreveu (e foi ignorado) que, depois do México e da Tailândia, há o risco -"Deus não o permita"- de o Brasil vir a ser a terceira vítima dos deuses financeiros. Referindo-se à Tailândia e à relação entre o tamanho das reservas internacionais e uma suposta fortaleza das moedas, registrou:
- Parte dessas reservas foram usadas para engordar as operações especulativas de curto prazo que se produzem quando os governos tomam a discutível decisão de defender uma paridade insustentável.
O Congresso não tem nada a ver com a sobrevalorização do real. Ela não faz parte nem sequer do buquê de reformas de FFHH. É um cadeado no qual o governo se meteu porque quis e, pelo que se sabe, sem entender direito o que estava fazendo.
O Congresso deu ao governo todas as leis necessárias à montagem do caixa das privatizações, mas, se FFHH acha que agora o remédio eficaz é a alta dos juros, tudo bem. Desde que fique combinado que não será o Congresso quem jogará dinheiro no ralo. Admitindo-se que os juros subam só dez pontos percentuais, a dívida interna brasileira poderá crescer, num só ano, em algo como US$ 25 bilhões. É um aumento de US$ 100 milhões por dia, equivalente a uma Companhia Vale do Rio Doce por mês, a toda a arrecadação da CPMF a cada quatro meses e a tudo que se ganhou com a venda do patrimônio da Viúva, mais alguns quilômetros de metrô. (A juros de 30% ao ano, no tempo que o leitor consumiu até aqui, a dívida aumentou em torno de US$ 140 mil.)
Se o presidente e a ekipekonômica estão convencidos de que podem ir em frente, que façam o seu serviço. Se estão apostando que assim dá certo, que pensem melhor. Política é uma coisa, aposta, bem outra. A sociedade brasileira tem muito apoio a lhes dar, desde que não seja tratada como uma choldra de bobos capaz de acreditar que o Congresso tem alguma coisa a ver com isso. A culpa, todos sabem, é dos ciclistas.

Trilha sonora
Algum dia, talvez em breve, o distinto público será informado de que, depois de uma declaração do ministro Sérgio Motta, ele foi chamado ao Alvorada por FFHH para uma conversa que durou várias horas.
Como de hábito, ninguém ouvirá o que eles disseram, mas de agora em diante fica entendido que, em pelo menos numa ocasião, essas conversas dos dois bons amigos se dão em tal volume que acordam a frequência da real residência. Isso aí: gritos.

CURSO MADAME NATASHA DE PIANO E PORTUGUÊS
Madame Natasha tem horror a música. Ela está convencida de que na segunda-feira as Bolsas caíram porque no sábado o presidente do banco central americano, Alan Greenspan, perdeu tempo na platéia de um concerto sinfônico.
A senhora protege os desalavancados do idioma e concedeu uma bolsa de estudos ao presidente do BC, Gustavo Franco. Ele disse que os pregões brasileiros precisam prevenir pânicos adotando um mecanismo que chama de "circuit breakers".
Trata-se de um dispositivo que suspende o pregão sempre que, num só dia, o índice da Bolsa cai abaixo de determinado ponto. Literalmente, "circuit breaker" vem a ser um interruptor de circuitos. Se Franco, ou qualquer outro anarcoglota, for à área de serviço da casa em que vive, achará uma caixa com diversos "circuit breakers" domésticos.
Madame acha que eles não conseguem pronunciar a palavra fusível.

Ser cientista é padecer no tucanato
Se não acontecer nada, o chefe do Gabinete Civil, Clóvis Carvalho, deixa amanhã sobre a mesa de FFHH o texto de uma medida provisória que destrói a especificidade da carreira de cientista na administração pública federal.
Depois de dois anos de negociações, os ministros José Israel Vargas (Ciência e Tecnologia) e Bresser Pereira (Administração) fecharam um acordo na semana passada. Combinaram que os 10 mil funcionários com nível superior da rede federal de pesquisas terão direito a uma gratificação (leia-se aumento) de R$ 560 por mês, desde que trabalhem em regime de dedicação exclusiva.
O doutor Israel queria que o aumento fosse para todos os funcionários, com quaisquer níveis de escolaridade, e Bresser queria que ele só beneficiasse os pesquisadores diplomados. Tinha toda razão, porque o que estava em questão era a organização da carreira dos cientistas com nível superior. Chegou-se a um meio-termo que, como a maioria dos acertos do gênero, chegará a lugar nenhum: em vez de dar a gratificação aos cientistas, ela será estendida a todos os funcionários com diploma e tarefas de nível universitário.
Os pesquisadores e cientistas são 2.500. Os burocratas e tecnologistas (carreira na qual juntam-se poucos funcionários ligados à criação científica e muitos que desempenham tarefas corriqueiras) são 7.500.
Transformou-se a reivindicação dos 2.500 cientistas que precisam de um plano de carreira numa locomotiva à qual atrelaram os vagões da burocracia, sobretudo da burocracia do ministério do doutor Israel.
Se um engenheiro ou contador do Ministério da Ciência e Tecnologia ganha pouco, é justo que ganhe mais. Não é racional, contudo, resolver o seu problema (ou o das crianças pobres de Nova Iguaçu) atrelando a carreira de um gerente de recursos humanos à de um físico ou de um matemático.
A esperteza não é lastimável pelas despesas que provocará. É absurda porque mistura a carreira dos cientistas com as carreiras das pessoas que trabalham em prédios onde há cientistas. Se levassem um papel desses para FFHH assinar quando ele tomava conta do dinheiro do Cebrap, os sábios seriam postos a correr. Agora, como o ervanário é da Viúva, talvez o doutor Israel aposte na sua burocratofilia.

Um passeio pelo divertido mundo dos riscos
Está nas livrarias uma ótima oportunidade para se associar a dança do papelório a algum entretenimento e muito aprendizado. Chama-se "Desafio aos Deuses - A Fascinante História do Risco", do consultor e ex-jornalista americano Peter Bernstein.
Trata-se de um erudito dedicado ao estudo da história do risco e das Bolsas de Valores. Sabe matemática e, com muita astúcia, conduz o leitor numa viagem pelo mundo dos números, da Idade Média à quebra de 1987 em Wall Street.
Estuda o risco nos jogos de azar (as chances de um par de dados somarem 7 são seis vezes maiores do que as de somarem 12). Mostra como se desenvolveu a teoria das probabilidades e como, há mais de 500 anos, as pessoas tentam descobrir um cálculo capaz de fazê-las ricas. Tem de tudo. O genial John von Neumann, pai da teoria dos jogos, estudando a alma de uma partida de cara e coroa. (Ele era capaz de multiplicar de cabeça números como 88.978.784 por 56.475.613.)
Tem também o prêmio Nobel Alan Blinder mostrando, num quadro elementar como um brincadeira de cubo, e economistas e políticos negociando uma política antiinflacionária para acabarem num mafuá que contrai a moeda e expande as despesas.
Não adianta procurar no livro a solução da charada que ele narra. Bernstein não ensina qual é a hora de fazer ou de não fazer. Pelo contrário. Ele chega a louvar a rentabilidade de alguns fundos de investimentos em países emergentes que estão virando pó ou, no mínimo, pesadelos.
Dois trechos deveriam ser panfletados no tucanato. Um se relaciona com o significado da dúvida:
- A verdadeira fonte da incerteza está na intenção dos outros.
A outra, com o processo racional que tira uma pessoa de um jogo:
- Eis a essência da aversão ao risco: quão longe estamos dispostos a ir na tomada de decisões que possam levar os outros a escolher caminhos que venham a nos prejudicar.
(A tradução do livro é um pouco machucada, mas também não se pode querer tudo na vida.)

Décio Pignatari
(70 anos, poeta, co-tradutor dos "Cantares", de Ezra Pound)
- No poema de Pound que o senhor traduziu ele fala de uma crise financeira dos anos 20 na qual se deu uma "queda dos valores brasileiros" e diz que os banqueiros só são capazes de gerar "investimentos em prédios para novos bancos, produtivos de prédios bancários". A crise de hoje é parecida com a do poema de Pound?
- Pound só era revolucionário na poesia. Nas outras coisas era muito conservador, detestava a Revolução Industrial. Essa crise é a virtude do capitalismo, de sua fantástica capacidade de recriar e regenerar, de impedir que resfriado vire pneumonia. Há um resfriado num gigantesco processo de mudança. A globalização acabou com os fusos horários, misturou o dia com a noite. Não há mais meia-noite em São Paulo, porque há meio-dia em Tóquio. Está acontecendo uma coisa muito boa para o Brasil.
- Com US$ 8 bilhões de perda de reservas? Isso não é coisa de poeta?
- Para que se destruam sonhos é preciso que haja sonhos. Somos um país grande e vamos virar um grande país. Só agora o Brasil se deu conta de que precisa entrar no capitalismo moderno. O capitalismo nunca passou por aqui. Vargas engessou o país. Alfred Witehead, o educador inglês, dizia que a noção de grandeza é uma intuição imediata, você decide ser grande porque resolve usar o que tem de melhor. Se você não acredita que pode ser grande, nunca o será.
- Na primeira ventania as reservas caíram. Virar grande? Como?
- Não estamos perdendo. Os asiáticos tropeçaram. O México é uma piada com muito petróleo e 400 famílias mamando debaixo do PRI. O Nafta deu errado, e o Mercosul está dando certo. Este Brasil que temos de Belo Horizonte para baixo é maior, mais poderoso e mais competente que toda a Europa Oriental. Temos capacidade gerencial. Esse pessoal que está em Brasília e administrou a crise da semana passada com valentia nos mostra isso. Temos que parar de jogar no bicho, para jogar no grande cassino. Temos que olhar para a primeira divisão, sabendo que há aí um campeonato mundial. Chegou a nossa hora.

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