São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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"O Capital" e os capitais

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Dizem as más línguas que um alto funcionário do governo, no auge do ataque especulativo que assolou o real, bradava pelos corredores de sua repartição: "É preciso reler 'O Capital'".
O velho Marx nos seus bons momentos -que eram muitos- costumava divertir-se com as trapalhadas conceituais dos epígonos da economia clássica. Essa turma, dos Nassau Senior, dos Bastiat, precursores dos mais eminentes economistas modernos, esmerava-se em demonstrar a harmonia do capitalismo e a existência de automatismos que impediriam a ocorrência das crises.
Apesar dos esforços dos economistas, as crises aconteciam. Nessas situações, dizia Marx nas páginas dos Grundrisse, "a contradição não se dá entre os diferentes gêneros de capital produtivo, senão entre o capital industrial e o capital de empréstimo ('loanable'), entre o capital tal qual se introduz diretamente no processo de produção e o capital tal como se apresenta como dinheiro, de maneira autônoma e à margem deste processo".
O capital "sobra" na esfera monetária, porque escasseia na esfera produtiva ou o estoque de capital produtivo é excedente e esse "excesso" aparece sob a forma de uma pletora de capital monetário, diante de perspectivas pouco animadoras de acrescentar o seu valor como capital em função. A "superprodução" de mercadorias e de trabalhadores só pode prosperar porque o capital escasseia sob a forma de novas aplicações produtivas e aparece como superabundante enquanto capital-dinheiro. "O dinheiro é tudo, as mercadorias não são nada", proclamava o autor de "O Capital".
Se vivesse no mundo de hoje, o velho Marx teria à sua disposição farto material -outrora subversivo- para escrever mais alguns volumes sobre as peripécias desse fascinante regime de produção.
O início dos anos 90 foi caracterizado pela notável recuperação dos fluxos de capitais privados para os países da América Latina, depois do longo período de estiagem que se seguiu à crise da dívida dos anos 80. Apesar da retórica "reformista" que escoltou o retorno dos capitais privados às praças latino-americanas, a verdade é que se tratava, outra vez, apenas do tradicional e conhecido "money chasing yield", ou seja, capital-dinheiro à cata de rentabilidade.
O fator conjuntural e decisivo para a transformação dos países latino-americanos, de doadores de "poupança" em receptores de recursos financeiros, foi sem dúvida a deflação da riqueza mobiliária e imobiliária observada já no final de 89, nos mercados dos países desenvolvidos. Essa profunda recessão exigiu grande lassidão das políticas monetárias com o propósito de tornar possível a digestão dos desequilíbrios correntes e no balanço patrimonial de empresas, bancos e famílias, envolvidos com o exuberante surto de valorização de ativos que se seguiu ao desastre financeiro e à intervenção salvadora do Federal Reserve em 1987.
Ao estado quase depressivo dos mercados de qualidade e à situação de sobreliquidez, causada por um período prolongado de taxas de juros muito baixas, juntou-se um quadro, nos "mercados emergentes" latino-americanos, de estoques de ações depreciados, governos fortemente endividados e proprietários de empresas públicas privatizáveis distribuídas por vários setores da economia, além das perspectivas de valorização das taxas de câmbio e da manutenção de taxas de juros reais elevadas, em moeda forte, mesmo depois da estabilização.
Os países da periferia, até então submetidos às condições de ajustamento impostas pela crise da dívida, foram literalmente capturados pelo processo de globalização, executando seus programas de estabilização de acordo com as normas dos mercados financeiros liberalizados. Essa peculiaridade da finança contemporânea, fundada na preeminência de mercados amplos e profundos para a negociação de papéis e seus derivativos, tem suscitado mais curiosidade do que análise e reflexão.
O crescimento espetacular da riqueza financeira e a formidável mobilidade do capital dinheiro, transacionados em mercados sofisticados e abrangentes, estão neste momento revelando a sua incapacidade de oferecer aos receptores base sólida para a ancoragem de moedas fracas ou ponto de partida para o crescimento sustentado.
Em primeiro lugar é preciso entender que a condição básica das "aberturas financeiras" é a criação de uma oferta de ativos atraentes que possam ser encampados pelo movimento geral da globalização. Nesse rol estão incluídos títulos da dívida pública, em geral curtos e de elevada liquidez; ações de empresas em processo de privatização; bônus e papéis comerciais de empresas e bancos de boa reputação; e, posteriormente, ações depreciadas de empresas privadas, especialmente daquelas mais afetadas pela abertura econômica e concorrência estrangeira.
É desnecessário dizer que onda de especulação altista com esses ativos provoca simultaneamente a valorização da moeda local. O diabo é que, invariavelmente, esses surtos de valorização dos estoques de riqueza costumam terminar, depois de momentos de euforia e confiança (sic), em agudas deflações de preços dos ativos sobrevalorizados, acompanhadas de forte desvalorização cambial, crise financeira e desconfiança generalizada. A questão se torna ainda mais delicada quando as posições estão muito alavancadas pela expansão do crédito bancário, nacional e estrangeiro, e quando, por exemplo, as ações ou imóveis valorizados são usados como garantia para a contratação de mais empréstimos.
A eclosão da desconfiança, como é óbvio, desencadeia a fuga dos ativos cujos preços estão sobreavaliados e, ao mesmo tempo, provoca a fuga da moeda local, em direção aos ativos financeiros denominados na moeda realmente forte que servia de referência, ou seja, o dólar. Hoje em dia são os títulos do governo americano que servem de refúgio seguro para o capital aventureiro, depois das incursões especulativas.
Nos mercados emergentes, depois do vendaval, resta o gesto desesperado: subir brutalmente as taxas de juros para trazer de volta o capital-dinheiro, que vai embora da mesma forma que apareceu, sem lenço, nem documento.

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