São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Fora do neoliberalismo há salvação?

FREI BETO

O avanço tecnológico atual, como expressão da riqueza, evidencia a distância entre a minoria privilegiada e a maioria da população que, no Brasil, não dispõe de rede de esgoto, instalações sanitárias, assistência à saúde e educação qualificada.
Pesquisa do governo federal a ser divulgada neste mês revela que há, fora da escola, cerca de 2,7 milhões de crianças entre 7 e 14 anos. Eis o paradoxo: aumenta-se a produção, reduz-se o emprego e, portanto, amplia-se a pobreza.
A Volkswagen de São Bernardo do Campo empregava, em 1980, cerca de 40 mil trabalhadores e produzia menos de mil veículos por dia. Hoje, emprega pouco mais de 20 mil e fabrica, por dia, cerca de 1.200 veículos.
Em Milão, a Benetton inaugurou um sistema computadorizado de confecção de tecidos que representou a demissão de 3.000 funcionários. Há dias, o empresário Antonio Ermírio de Moraes admitiu que, nos últimos dez anos, a Votorantim reduziu seus funcionários de 62 mil para 40 mil.
O medo do desemprego é o principal fator de instabilidade emocional de inúmeros executivos. Muitos são tomados pelo estresse, pela hipertensão, por problemas cardíacos. Alguns resvalam para o alcoolismo e as drogas.
Os sistemas produtivo e financeiro são globalizados; o distributivo, afunilado. Há cada vez mais mercados para menos consumidores. O jeito é reduzir o preço das mercadorias, tornando-as mais competitivas, como fazem os chineses.
Atrás do preço baixo de um produto estão embutidos salários irrisórios, horas extras não pagas, direitos trabalhistas lesados. Os EUA aprendem a lição e instalam suas fábricas no México e na América Central.
Hoje, é refinado luxo falar em vocação, sonho escolher uma profissão, difícil aprender um ofício e bênção obter um emprego. Ainda que esse emprego não corresponda ao trabalho que se gostaria de fazer, à profissão para a qual se sentiria habilitado, à vocação que realizaria o trabalhador como ser humano. Quantos Mozarts e Einsteins são bóias-frias ou, na ponta da pirâmide social, executivos entregues ao perigoso esporte de acumular riquezas.
Os pobres não têm como potencializar seus talentos. E, entre aqueles que dispõem de capital, há os que mergulham de tal modo na ciranda financeira, ávidos por expandir seus negócios, que nisso consomem a saúde, a vida familiar, a alegria de viver e o dom de criar.
Henry Ford considerava o homem "um animal preguiçoso". Com exceção dele, é claro. Assim, criou a verticalização no processo produtivo. Agora, a terceirização introduz o pós-fordismo. O homem é um animal fragmentado.
A pulverização dos serviços torna o trabalhador estranho não só ao que produz, mas ao próprio processo produtivo. Isso mina a consciência de categoria profissional e a estrutura sindical. O neoliberalismo joga o assalariado numa rede anódina e anônima, que lhe nega um mínimo de dignidade como profissional e reduz seus direitos.
Marx ficaria surpreso: as classes sociais são eliminadas não pelo fim das desigualdades, mas pela consciência atomizada que não alcança as macroestruturas. A fragmentação só enxerga as partes -jamais o todo.
Economia vem do grego "oikos, habitat, casa" -o modo de gerir bens e serviços imprescindíveis à vida humana. Hoje, ela ignora o humano e centra-se na acumulação do capital.
O mercado é exaltado como único mecanismo capaz de fazer funcionar a economia. O Estado de bem-estar social é tão repudiado quanto o Estado absoluto das monarquias e o Estado síndico do socialismo.
O mercado desempenha, inclusive, uma função epistêmica. Ergue-se como novo sujeito absoluto, que se legitima por sua perversa lógica de expansão das mercadorias, concentração da riqueza e exclusão dos desfavorecidos.
O Estado, outrora encarado como agente social, torna-se o grande Leviatã. Os políticos, ainda que da boca para fora proclamem que o Estado não pode omitir-se de suas funções sociais, tratam de desmantelá-lo. Desmanches de carros e privatizações têm algo em comum.
A crise da modernidade traz em seu bojo a crise do projeto libertário forjado pela própria modernidade. A idéia de libertação, filha dileta do Iluminismo, hoje é execrada como diabólica.
As revoluções inglesa, americana e francesa são confinadas aos livros de história. E, se ainda merecem atenção, é por terem assegurado a emancipação da burguesia e a falência da monarquia absoluta.
Agora que o socialismo real ruiu, a utopia de uma sociedade de igualitária é abominada. Marx conclamava: "Proletários do mundo todo, uni-vos!". Mas foram os burgueses que lograram responder ao apelo. Não há mais capital sem conexão internacional.
A proposta ética de que essa riqueza deve servir à felicidade de todos os povos da Terra é assombrosamente anatematizada. A riqueza é para exaltar seus possuidores, ainda que a miséria se expanda como um cancro que corrói o tecido da família humana. Vejam a mansão de US$ 60 milhões de Bill Gates! É o "horror econômico", na expressão de Viviane Forrester.
Diante desse panorama, não basta aos setores progressistas -partidos, sindicatos, movimentos populares- denunciar e sonhar. É preciso que apresentem alternativas viáveis, factíveis, inovadoras, já que dentro do neoliberalismo o céu está ao alcance de uma minoria, enquanto a classe média, condenada ao purgatório, ainda crê que escapará do inferno que consome a maioria.
Fora de um programa consistente que arranque o Brasil da miséria, as eleições presidenciais de 1998 serão apenas mais um espetáculo enfadonho de demagogia e vaidades.

Frei Betto, 53, é frade dominicano e escritor, autor do romance "Entre todos os homens" (Ática) e assessor de movimentos sociais.

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