São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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Instantâneo histórico de uma noite em Sampa

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Aí estou eu, caindo ao pé da foto -óculos de aro escuro, costeletas e um casaco de couro preto, como mandava o figurino. Fazia frio, como se vê, nessa noite perdida de agosto de 68, o ano em que o mundo ferveu, na grande dobra do tempo que deixou tudo para trás em busca do que é hoje.
Ao meu lado, o teatrólogo, ator, escritor, jornalista e nosso mártir recém-renascido das cinzas do regime militar, Chico de Assis. Sim, porque, com o golpe de 64, Chico virou lenda. Uns juravam que ele havia sido jogado ao mar de um avião militar; outros, que o viram se esvaindo em sangue, metralhado, numa praça de Recife. O fato é que Chico sumiu, para reaparecer, três anos depois, numa guerra de melancia e queijo de Minas com o compositor Chico Maranhão, na cozinha da minha casa, numa festa tão insólita que virou capítulo do romance "Zero", do Ignácio de Loyola Brandão, um best seller à época. À certa altura, pra dar fim à bagunça, o escritor João Antônio decidiu expulsar todos os bicões. E expulsou -os únicos convidados de honra: Gal, Gil, Caetano e o empresário da trupe, Guilherme Araújo, que ficou à porta esbravejando contra tamanha falta de civilidade.
Gal, Caetano, Gil, Nara, a doce Narinha, mais Arnaldo, Rita e Serginho, que no ano anterior, quando dirigia o programa de Ronnie Von, na Record, resolvi batizar de Os Mutantes, estão aí todos congelados num instante histórico -o lançamento do disco "Tropicália", na gafieira Som de Cristal, na rua Rego Freitas, centro de São Paulo. De costas, regendo a orquestra, o maestro Rogério Duprat, que, juntamente com Júlio Medaglia e Damiano Cozzella, fez os arranjos para que esse movimento "troppo leggero" revolucionasse a revolução.
É porque, até esse instantâneo, a revolução que queríamos era a do realismo socialista, expressa nas músicas de protesto de Zé Ketti a Geraldo Vandré, passando por Sérgio Ricardo, e refinadas, já então, por Chico Buarque. Mas a revolução que se deu com o tropicalismo foi a da estética, na surpreendente combinação dos baianos com os maestros eruditos e o trio de ouro da poesia concreta -Décio Pignatari e os irmãos Campos.
A propósito, cadê Torquato Neto? Deveria estar em primeiro plano nessa foto, posto que se deve a ele a alquimia dessa geléia geral. Como se vê, já estou me esgueirando para dentro da foto e usando as expressões que corriam de mesa em mesa, entre copos de cerveja e cálices de conhaque Dreher, já que o uísque importado era proibitivo, quando não falso. Tanto que mestre Paulinho Vanzolin, na sua mesa cativa do Jogral, ali na Metrópole (nesse tempo, já estava na rua Avanhandava), nosso templo, mantinha um estoque da mais pura cachaça para evitar o pior.
Torquato devia estar produzindo o "Manifesto Tropicalista", na redação da "Última Hora Dominical", onde ele -ao lado dos jornalistas Woile Guimarães, Myltainho Severiano, Otoniel Santos Pereira e Fernando Pessoa Ferreira- defendia os caraminguás que lhe permitiam poetar os novos tempos que seu gênio anunciava.
Como? Se essa foto me desperta saudades? Muitas, sobretudo da minha magreza perdida para sempre. Mas, afinal, éramos todos esbeltos no vigor dos 26, 27 anos. Todos, menos o Renatão, o Renato Correia de Castro, produtor musical, que vejo disparando lépido e desesperado pelo palco do Teatro de Arena, tentando escapar do velho Ziembinski, num acesso de fúria sexual do mestre polonês.
Pois era o Renatão que todas as segundas-feiras, à meia-noite em ponto, quando se encerravam os shows de bossa nova produzidos por Solano Ribeiro, armava o seu próprio espetáculo, e ia para a bilheteria esperar os incautos que se dispusessem a pagar para ver aquele rapaz mirrado, introspectivo, com um violão apoiado no joelho, voz sumida e um estranho sotaque de vogais abertas e preguiçosas.
"Quem é hoje, Renatão?"
Renatão aspirava sua asma inseparável e respondia em tom gutural:
"É bom, é bom, podes crer. É um tal de Caetano Veloso".

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