São Paulo, domingo, 2 de novembro de 1997
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O Grande Fogo

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Quando eu era criança, não se dava um passo sem esbarrar com aqueles caras fardados de cáqui, lenço verde no pescoço, apito no peito e belíssimas intenções na cabeça. Oficialmente, eles não podiam passar o dia sem cometer uma boa ação.
O escoteiro sempre ajudava a velhinha a atravessar a rua e ensinava os lobinhos (meninos que faziam laboratório para serem escoteiros) a não pisar na grama, a respeitar a natureza, a não maltratar os animais.
Afora isso, se orgulhavam de saber dar nós complicados, era um ritual solene de discutível serventia. Aliás, nunca pude perceber para que os escoteiros serviam.
Eu admirava os mata-mosquitos que traziam a bandeira amarela e a penduravam na grade do jardim enquanto iam inspecionar as poças d'água do quintal, que podiam ser foco de mosquitos. Homens humildes, também metidos em fardas cáqui, disputavam com "o seu amigo, o lixeiro" as doações da rua por ocasião do Natal.
Não havia casa, por mais pobre que fosse, que não desse as festas ao mata-mosquito, ao lixeiro, ao carteiro da rua. Não se dava nada aos escoteiros, nem nada pediam. Eles é que se metiam a dar conselhos. No dia em que fui roubar carambolas numa casa vizinha, um deles me repreendeu e me profetizou abominável futuro -o que no fundo se realizou.
Reuniam-se uma vez por ano para o Grande Fogo. O lema deles era Sempre Alerta. Trocavam sinais cabalísticos entre si, com a ponta dos dedos, tal como na maçonaria. É possível que ainda existam.
Na praia do Russel há um busto do Baden Powell, o cara que criou o movimento. Resumindo: eu achava os escoteiros suspeitos, como os integralistas -que também se vestiam de verde. Foi talvez para ser diferente deles que me meti numa batina e com ela fiquei oito anos. E dela tenho saudade.

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