São Paulo, segunda-feira, 3 de novembro de 1997
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O Mercosul é o pássaro na mão

ABRAM SZAJMAN

Assentada a poeira da visita de Bill Clinton ao Brasil e superados os arroubos nacionalistas provocados pelas gafes norte-americanas no tragicômico "relatório" sobre nossas mazelas -supostas ou reais-, o episódio pode ser analisado com a cabeça fria. Primeira conclusão: os Estados Unidos da América não são um país bom ou mau. São um país forte.
Única grande potência militar da atualidade e maior economia do planeta, nem por isso deixa de ter seus problemas: precisa recuperar seu crescimento e sua competitividade, o que significa sair da incômoda situação de nação importadora de produtos manufaturados, com elevadas dívidas externa e interna.
O caminho adotado para essa recuperação, desde o início do primeiro mandato de Clinton, tem sido uma pressão mundial pela liberalização do comércio internacional. A partir disso, em outras palavras, só não possuem um contencioso econômico com os Estados Unidos, de alguma forma, os países cujas economias são inexpressivas.
Os desencontros entre os EUA e a Comunidade Européia são constantes, tanto em setores como o agrícola e o de serviços como em algumas regiões, com os bloqueios econômicos decretados pelos norte-americanos contra Cuba e Iraque, mas não respeitados pelos europeus. No caso do Japão, os Estados Unidos chegaram a proibir navios mercantis japoneses de atracar em portos americanos.
Assim, a constituição da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), idealizada pelos EUA para expandir suas exportações para as mais de 30 nações do continente americano (exceto Cuba), também não poderia estar isenta de conflitos de interesses.
Não é fácil estabelecer as mesmas regras para economias desiguais, e desigual é o peso da economia e do mercado norte-americano quando comparado "vis-à-vis" a qualquer outro país isolado das Américas.
É nesse ponto que entra o Mercosul, constituído por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai -e em via de integrar o Chile e a Bolívia-, que já estava consolidado quando os EUA lançaram a discussão da Alca.
O Mercosul não foi criado para se contrapor aos EUA nem a nenhum outro país ou bloco econômico. Foi criado para integrar econômica e politicamente países que, apesar de vizinhos, viveram durante séculos ou em conflito ou de costas uns para os outros.
Ao contrário da Alca, o Mercosul não visa apenas a eliminação de barreiras alfandegárias entre os países: pretende ser um mercado comum, caminhando para uma moeda única e para instituições conjuntas, até mesmo militares, que consolidem a democracia, afastando todos os temores de retorno aos regimes autoritários do passado.
Nesse contexto, a Alca não pode ser considerada uma alternativa ao Mercosul, porque os países do Cone Sul não podem e não querem ser "integrados" de maneira isolada à globalização.
Mas a Alca será positiva para todos se entendida como espaço de ampliação da atuação do Mercosul como um todo. É por isso que, simbolicamente, os países do bloco comparecem às reuniões da Alca sob o nome de "Mercosul", com o nome de cada país abaixo.
Como o governo norte-americano é sobretudo pragmático e sabe que já está ultrapassada a diplomacia dos alinhamentos automáticos do tempo da Guerra Fria, o presidente Bill Clinton disse em alto e bom som, em sua recente visita à região, "apóio o Mercosul", em vez de estimular atritos que estavam sendo criados por membros do seu próprio governo.
Essa é a segunda conclusão que se pode tirar da visita de Clinton. Os EUA aceitam o Mercosul e o cronograma de implantação efetiva da Alca a partir de 2005. Renunciam, na prática, à estratégia do salame: comer fatia por fatia o mercado de cada país isolado.
Nisso também está a força dos Estados Unidos: saber recuar quando o interlocutor é altivo. A integração das Américas se dará não pelo beija-mão, mas pelo aperto de mão entre países e blocos soberanos.
O Itamaraty e o presidente Fernando Henrique Cardoso estão conduzindo a questão com equilíbrio e habilidade. O Mercosul é o pássaro na mão. A Alca, além de estar voando, ninguém sabe ainda como será.
Assim como o bom comerciante não compra nabos em sacos, o Brasil não pode aderir à Alca por partes, e sim apenas depois que o conjunto de acordos do futuro bloco estiver definido.

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