São Paulo, segunda-feira, 3 de novembro de 1997
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Ficção orçamentária

CESAR MAIA

O governo do Estado do Rio de Janeiro apresentou à Assembléia Legislativa o Orçamento referente ao ano de 1998. Trata-se de uma peça de ficção.
Quando se pensava que, num regime de inflação quase nula, os governos voltariam a dar credibilidade aos Orçamentos, o que se vê é exatamente o contrário. Afinal, o Orçamento está na raiz e na razão da existência do Legislativo desde o século 15 na Inglaterra.
Que a situação do Estado é crítica é fato conhecido. Desde 1995, os precatórios não são pagos, o que já gerou, na forma da Constituição, diversos pedidos de intervenção federal à Justiça. Desde janeiro de 96, as gratificações de férias dos servidores não são pagas. O mesmo ocorre com os triênios e outros direitos pessoais.
E não se trata de marajás, mas de serventes, professores -enfim, de todos os servidores. O valor do atraso médio com fornecedores e empreiteiros já passa dos oito meses.
Os exercícios de ficção estão tanto na esfera das receitas como na das despesas. A começar pelas receitas tributárias, que, sem nenhuma base real, são "chutadas" do nível atual de R$ 5,7 bilhões para R$ 7,6 bilhões, numa tentativa de dar cobertura a despesas meramente virtuais. A base desse acréscimo gráfico é o ICMS, que dos atuais R$ 5,3 bilhões é "chutado" para R$ 7 bilhões de reais.
Ficção ainda mais delirante são as receitas de capital, que passam do R$ 1,7 bilhão anual de hoje para R$ 5,1 bilhões. Essa mágica é produto de uma previsão de realização de R$ 2,5 bilhões de operações de crédito, duas vezes maior que o patamar atual, e de uma estranha alienação de bens prevista em R$ 2,5 bilhões, quando se sabe que as privatizações capazes de produzir receita substantiva -CEG e Cerj- já foram realizadas em 96 e 97.
Provavelmente para gerar expectativas, o virtuosismo se excede no nível das despesas. Prevê-se uma expansão dos gastos que não tem nenhuma relação com as receitas efetivas.
Para quem fala em privatizar hospitais públicos com vistas a reduzir despesas, é pelo menos curioso o fato de as previsões de gastos na Secretaria da Saúde subirem ciclonicamente dos R$ 191 milhões de 1996 para R$ 647 milhões. Ou que a função "educação e cultura" seja lançada do nível atual de R$ 1,55 bilhão para mais de R$ 3 bilhões, o equivalente a 75% do ICMS próprio do Estado em valores de hoje.
Já foi amplamente divulgado que mesmo o R$ 1,55 bilhão de 1996 para a educação foi atingido por meio de uma pichação contábil nos últimos dias de dezembro daquele ano.
É fácil identificar os truques. Basta analisar as despesas relativas aos segmentos que têm gestão autônoma na execução orçamentária, como os Poderes Legislativo e Judiciário, cujo gasto se mantém no mesmo patamar do realizado em 1996.
Ou verificar a função "desenvolvimento regional", que espelha as transferências constitucionais de tributos para os municípios e que, se fosse inchada, conduziria a uma organização completamente distorcida dos Orçamentos municipais. Nessa função, outra vez se mantêm os mesmos valores da execução orçamentária de 1996, até com um decréscimo real.
Se fosse por razões estritamente virtuais, dir-se-ia que se trata de uma simples brincadeira com o Poder Legislativo e a opinião pública.
Mas um Orçamento aprovado dessa maneira é um forte indutor, até por desespero político, ao agravamento da já desintegrada situação das finanças públicas estaduais. E quem dá esse sinal é o próprio Orçamento, que, tendo que lançar o valor da dívida pública até julho de 1997, informa-nos que, dos R$ 8,3 bilhões de dezembro de 96, chegou-se a extravagantes R$ 12,3 bilhões em curtos seis meses.
Um quadro desses deveria produzir um debate legislativo intenso, uma análise atenta do Tribunal de Contas, do próprio Ministério Público e de ONGs que foram criadas para o acompanhamento do processo orçamentário no Rio de Janeiro.
De nada adiantará cobrar responsabilidades no futuro se a situação dos serviços públicos, naquele momento, incorporar às medidas necessárias para a sua inversão custos sociais que poderiam ser inteiramente dispensáveis se, desde já, tivéssemos uma gestão técnica competente.

E-mail: factoides@openlink.com.br

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