São Paulo, quarta-feira, 5 de novembro de 1997
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'Qual é o som de uma mão batendo palmas?'

RON ROSENBAUM
DA "ESQUIRE"

Assim teve início a Era da Muralha. Para Salinger foi um período de preocupação intensificada com questões espirituais, assinalada na célebre epígrafe sobre o silêncio que, naquele ano, ele acrescentou à edição em capa dura de sua primeira coleção de contos, "Nove Estórias": "Conhecemos o som de duas mãos batendo palmas. Mas qual é o som de uma mão batendo palmas?"
Esse é um koan, o que significa, no zen budismo, uma pergunta sem sentido feita a um discípulo e para a qual ele tem de encontrar uma resposta.
Os budistas acreditam que a meditação necessária para encontrar a resposta pode levar à iluminação. Tudo isso só intensificava a aura de mistério: o que estava acontecendo por trás da muralha, que tipo de busca silenciosa? A muralha excluía o mundo, mas também o atraía, inspirando buscas próprias, especulações desvairadas. Num de seus contos posteriores, o narrador/alter ego de Salinger fala dos boatos de que teria passado "seis meses de um ano num mosteiro budista e os outros seis numa instituição para doentes mentais".
Também houve muitos indicativos de normalidade: o casamento com uma jovem inglesa, Claire Douglas; os filhos, Matt e Peggy; o relacionamento de um ano com a jovem escritora Joyce Maynard, que viveu com ele durante esse período, e, depois, outro casamento. O homem não era um ermitão ou monge total. Mas havia a crescente percepção de que a muralha que mantinha o mundo fora de sua casa havia, de algum modo, conseguido aprisionar Salinger.
No romance de DeLillo sobre um escritor que lembra Salinger, há um paralelo implícito entre um poeta que é feito refém por terroristas num porão em Beirute e o romancista feito refém em seu quartinho, refém do terror da celebridade -ou da assustadora magnitude de sua própria visão da perfeição.
A filosofia curativa de Salinger se revela
O mínimo que se podia dizer é que a muralha parecia, cada vez mais, encerrar sua obra por trás dela. Nos 12 anos que se seguiram à sua construção, em 1953, Salinger publicou apenas quatro contos. Depois vieram "Hapworth" e 32 anos de silêncio.
Entre seus leitores e críticos, havia uma crescente sensação de que ele estava se emparedando também imaginativamente, escrevendo de maneira cada vez mais obsessiva sobre o fechamento em si da família Glass (a família Corleone dos círculos literários sensíveis), uma grande família de Nova York cujos sete filhos são assombrados e atormentados de diversas maneiras pela enigmática espiritualidade -e o misterioso suicídio- do primogênito, Seymour.
Guru, poeta, avatar, ex-criança prodígio e celebridade infantil de "quiz shows", o próprio Seymour, como ficamos sabendo no conto "Hapworth" (que assume a forma bizarra de uma carta de 20 mil palavras escrita por um Seymour de sete anos de idade, impossivelmente precoce, para sua família desde um acampamento de férias), é assombrado por visões de suas vidas passadas -seus "aparecimentos" em encarnações passadas, como os descreve. E também pela premonição de sua própria morte, o suicídio a tiros descrito de maneira críptica em "Um Dia Ideal para os Peixes-Banana" -um conto, um suicídio, que rendeu mil dissertações de PhD, todas procurando explicar por que Seymour se silenciou.
Estaria Salinger cometendo um suicídio artístico lento no interior da muralha, silenciando-se dentro da casa de vidro de sua crônica da família Glass (vidro, em inglês)? Ou teria ele atingido algum novo e estranho nível de transcendência espiritual ou artística, uma escrita que já não necessitava do reconhecimento de ego garantido pela publicação e pelos leitores, pelo menos durante sua vida? Ou -idéia pavorosa- estaria escrevendo agora apenas para os olhos de Deus, planejando dar uma de Gogol e queimar sua obra antes de morrer?
Alguns de nós, que nos preocupávamos com isso, corremos para procurar fotocópias pálidas do conto "Hapworth" e vasculhá-las à procura de pistas, quando foi feito o anúncio da decisão de Salinger de voltar a permitir a história de uma vida fora dos limites da muralha. Em um momento de "Hapworth" -a obra mais hermética e auto-referencial de Salinger- o pequeno Seymour Glass parece oferecer alguns indícios sobre o silêncio de seu criador.
Ao falar da lição de casa cármica que precisa fazer, Seymour menciona a necessidade de "me mover o mais silenciosamente possível" e depois cita um sábio oriental, Tsiang Samdup (de maneira que pressupõe que estejamos familiarizados com sua autoridade) comentando o silêncio: "Silêncio! Saiam para o mundo, mas não digam a homem algum", nos recomenda o honorável Samdup, segundo o pequeno Seymour.
Isso possivelmente ofereça uma pista quanto ao que Salinger talvez esteja fazendo: continuando a sair para o mundo com seu trabalho, mas não dizendo a homem algum o que escreveu. Possivelmente até estar a caminho de sua próxima encarnação.
"Hapworth" também nos oferece uma prévia tantalizante do próximo conto de Salinger a nunca ser visto: aquele que talvez tenha escrito, mas mostrado apenas a Deus, ou que talvez venha escrevendo e revisando, incapaz de terminá-lo.
Pode até ser aquele que o silenciou. Sabemos dessa história, ou achamos que sabemos, porque Seymour, aos sete anos de idade, em "Hapworth", prevê tanto o acontecimento que a ocasiona quanto a história que seu irmão Buddy, o alter ego de Salinger, vai escrever sobre o acontecimento.
Será apenas por acaso que essa história, a história que talvez tenha silenciado Salinger, diga respeito à tentação e à queda na celebridade? A celebridade repentina em que caem as crianças da família Glass, como estrelas de um "quiz show" na rádio chamado "It's a Wise Child" (Isto é uma Criança Sábia).
Uma exposição à publicidade que deixaria todas elas feridas e marcadas de diversas maneiras.
A hipotética história pós-"Hapworth" pode ser vista como alegoria das feridas que o próprio Salinger sofreu em sua repentina transformação em celebridade.
Feridas, isso mesmo -retornemos à história dos ferimentos falsos, na qual um possivelmente ferido Salinger, por trás de sua muralha, é confrontado por um falsamente ferido peregrino gemendo diante da muralha.
O que aconteceu, segundo me contou a vítima um tanto quanto contrariada dos falsos ferimentos, foi que, pouco depois de ela ser largada ali, lambuzada de ketchup, as luzes foram acesas na casa atrás da muralha, "como se alguém estivesse observando".
E, depois de algum tempo, foram apagadas. Depois disso, nada. Silêncio. Ninguém saiu da casa.
Após algum tempo, seus amigos retornaram e todos foram embora, mortificados. Não voltaram achando que Salinger fosse cruel ou insensível. Mas com a impressão de que o golpe dos ferimentos falsos já havia sido tentado antes; que casos de pessoas levando ferimentos, tanto falsos quanto verdadeiros, para mostrar diante da muralha já haviam se tornado rotina. Que Salinger, de alguma maneira, aprendera a diagnosticar a diferença entre sangue e ketchup, entre a dor verdadeira e a simulada.
Isso conflita um pouco com a história de que o escritor e radialista Jonathan Schwartz me contou, sobre uma mulher que conheceu que fizera a romaria, levando junto seu filho de cinco anos.
Ela chegara ao ponto de bater na porta da casa de Salinger, e, quando ele se negou a deixá-la entrar, lhe disse que tinha uma criança esgotada e nervosa no carro.
Diante disso, Salinger se mostrou extremamente solícito, convidou os dois a entrar, alimentou a criança e brincou com ela durante horas, enquanto todos assistiam a "Monkey Business", dos irmãos Marx, e a um episódio de "I Love Lucy".
São Francisco de Assis ou Michael Jackson? Tanto o santo quanto a celebridade estranha e reclusa atraem os feridos.
A história dos ferimentos falsos me marcou porque parece explicar a poderosa atração exercida pela muralha, a sedução profunda do silêncio com que se cerca um escritor como Salinger.
O poder que nos atrai para a muralha de Salinger, física ou metaforicamente, é a percepção de que o silêncio é indicativo de algum conhecimento especial, alguma sabedoria, a penetração de algum mistério situado além das palavras, além do discurso, algo que só pode ser expresso pelo silêncio.
A muralha que ele ergueu é, metaforicamente, um lugar para onde podemos levar nossas feridas reais para que sejam examinadas, curadas -as feridas, os buracos abertos em nossa alma, os lugares vazios consumidos pelo sentimento de inautenticidade, pela devastação gerada pela cultura da celebridade.
E isso me leva até a descoberta bastante extraordinária que fiz em relação a Salinger como "curandeiro", no decorrer das várias pesquisas que desenvolvi sobre o Homem por Trás da Muralha.
É algo que, acredito, nunca antes foi noticiado. É uma revelação à qual fui conduzido, muito indiretamente, por uma sequência de elos aleatórios, e que contradiz a visão convencional de Salinger como alguém que se rendeu totalmente às disciplinas religiosas orientais. Embora seja verdade que as disciplinas orientais o atraem, o fato é que a disciplina curadora que mais o atraiu, pelo menos por algum tempo, e sobre a qual ele discorreu para outras pessoas, é um sistema de cura muito mais ocidental e próximo de nós: a medicina homeopática. Sim, a homeopatia, o herético sistema alternativo de diagnose e cura criado pelo médico alemão Samuel Hahnemann no final do século 18, por muito tempo desprezado pela medicina alopática mas retomado pelos curadores new-age, e que, segundo consta, ainda seria utilizado pela família real britânica, entre outros.
Por que homeopatia? Parte da atração talvez se deva à maneira como o romantismo alemão do sistema curativo de Hahnemann oferecia uma ponte entre o físico e o metafísico, transcendendo o dualismo corpo/mente tão criticado pelos avatares infantis de Salinger, como Teddy, em "Nove Estórias", e Seymour, em "Hapworth".
A homeopatia diz respeito à ressonância interpenetrante desses dois campos. Deixando de lado a questão de sua validade científica, pode-se encontrar na tentativa feita pela homeopatia de explicar uma poesia metafórica que, acredito, tem correlações com a solitária presença ausente de Salinger.
O velho Samuel Hahnemann propunha que os semelhantes fossem tratados como semelhantes: que uma dose infinitesimal daquilo que deixou você doente pode curá-lo. Se você estivesse vomitando, por exemplo, a homeopatia receitaria doses minúsculas de ervas que induzem à náusea.
O que é ainda mais peculiar e controvertido é que Hahnemann acreditava que quanto mais diluía seus remédios em água destilada, mais potentes se tornavam.
Esse fato já levou seus críticos a afirmar que, em sua "potência mais alta", ou seja, no maior grau de diluição, os medicamentos homeopáticos são diluídos ao ponto de se tornarem "invisíveis", e que os médicos homeopatas, em essência, prescrevem a seus pacientes nada mais, nada menos, do que água destilada. Ao que os defensores da homeopatia respondem, poeticamente, que o efeito é exercido não pela presença da erva curativa na água, mas pela impressão "potencializadora" que a dose antes presente, agora ausente, deixou na configuração molecular da água.
Seria uma memória do encontro que, de alguma maneira, fica inscrita na água.
Não estou defendendo a homeopatia, apenas admirando a poesia de um sistema de cura em que a ausência e a memória exercem mais poder do que a presença -e sugerindo que, em algum lugar nessa retórica homeopata, se encerra uma metáfora que explica a ausência e invisibilidade de Salinger em nossa cultura: que a própria retirada de sua presença deixou sua memória, sua influência, talvez até mesmo sua presença curadora mais potente do que seria sua presença não diluída. Que seu silêncio é uma espécie de remédio homeopático para o mal do barulho de que todos nós sofremos.

LEIA a continuação dessa reportagem amanhã e na sexta-feira na Ilustrada
Tradução Clara Allain

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