São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
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Bressane traça gênese de seu "Miramar"

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Miramar", o 20º longa-metragem de Julio Bressane, é um filme sobre a formação intelectual e afetiva de um jovem cineasta.
Bem ao estilo erudito e paródico do diretor, o título cruza duas referências: ao personagem-título do romance "Memórias Sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade, e ao extinto cinema carioca Miramar.
Saudado pelo jornal francês "Libération" como "uma fábula leve, fresca e apaixonadamente cinematográfica", "Miramar" foi rodado em 12 dias, ao custo de R$ 380 mil.
No mesmo esquema rápido e barato, Bressane deve rodar em janeiro, no Rio e na Bahia, seu filme sobre a vida de São Jerônimo.
Depois disso, o diretor parte para seu projeto mais ambicioso: a realização de "Cleópatra", com orçamento de R$ 5 milhões.
Bressane falou à Folha sobre "Miramar", estética e Glauber Rocha.
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MOTIVAÇÃO - "Primeiro me veio a idéia do romance de formação, mas uma coisa paródica, uma versão mais próxima de mim.
Como era um jovem que estava se preparando para fazer cinema, eu tinha idéia de mostrar como surgiriam as imagens que ele próprio fez.
Pensei em fazer como se fossem uns anagramas que estivessem embutidos no filme. Fotogramas que fossem aparecendo e se estendendo ao longo do filme, até que no final eles se concretizavam e se sequenciavam mais."
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CITAÇÃO - "A alusão é uma maneira de se despersonalizar e de criar também um colapso no tempo. A citação junta coisas que estão distantes e que são transpessoais. São, digamos, outras forças poderosas que você coloca em contato com a força do cinema. É esse choque com os signos que estão fora do signo do cinema -os signos da literatura, da música, da poesia, da ciência- que pode fazer com que o cinema supere o seu clichê."
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IMAGEM - "A idéia da textura do filme, como captação da luz, foi muito importante. Procuramos fazer uma experiência colocando filtros muito cerrados dentro da lente, para que ficasse uma fotografia difusa, com pouca definição."
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CANIBALIZAÇÃO - "Na questão do espaço da sala, dos espaços interiores, me lembrei muito do filme da Germaine Dulac, 'A Sorridente Madame Beudet'. É um exercício quase de desconstrução do cenário de interiores.
A figura que usei para identificar a inconstância, um certo despreparo do personagem, inclusive das primeiras imagens que ele cria, foi uma figura antiga no cinema, que é filmar em reverso, em retrocesso. O filme em que esse procedimento foi mais bem-sucedido foi o 'Orfeu', do Jean Cocteau, onde se criava cinematograficamente a idéia da transcendência, do além-túmulo, de vida além da vida, que é central no mito de Orfeu.
E na hora em que o Miramar começa justamente a fazer o filme dele, encenando com aquelas duas meninas em frente ao mosaico do Orfeu, ali a referência é 'Je Vous Salue Marie', do Godard, a idéia da fruição do mito nos nossos dias, e também da sua transvaloração."
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ALUSÕES SONORAS - "Os filmes citados são 'Macbeth', do Orson Welles, 'Julio César', do Mankiewicz, 'Rastros de Ódio', do John Ford, 'To Have and Have Not', do Howard Hawks, 'Pick Up on South Street', do Samuel Fuller, 'Little Foxes', do William Wyler. Há também textos de Cocteau ('Orfeu'), Thomas Hary ('Judas, o Obscuro'), Charles Dickens ('Oliver Twist').
Não é preciso que você saiba o que está sendo dito, conheça inglês, identifique o filme e a cena de onde saiu a fala. O importante, ali, é aquela sensação da voz. Mas, claro, existe um matiz grande de leituras. Cada palavra tem uma importância enorme. Quanto mais coisas você souber, mais chaves elas te darão para o entendimento. Isso não elimina o entendimento preliminar, afetivo, do registro e da sensação de uma voz. Aquilo é uma música elementar."
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GLAUBER - "O Glauber me escreveu duas cartas. Joguei as duas fora. Me mandou uma carta tremendamente triste, de Portugal, falando que 'A Idade da Terra' era um diálogo com o meu cinema, que eu era um grande poeta, umas conversas assim. E mandou outra, mais antiga, de 67, por aí, uma longa carta, com juras de amor etc. Era até um Glauber mais simpático, mais sensual. Mas joguei fora.
Ele tinha horror de cinema experimental. Para a esquerda, marginal, louco e drogado é a ralé da ralé. Quando ele criou a expressão 'udigrudi', foi uma maneira de desqualificar e marginalizar o cinema que nós fazíamos.
O cinema do Glauber é um passo importante de renovação. 'Deus e o Diabo' e 'Terra em Transe' trazem para nós sobretudo uma forma de compreensão da luz que foi usada pela 'nouvelle vague' francesa e italiana. O Glauber foi um assimilador extraordinário dessas descobertas, até com um veio antropofágico, porque soube devorar, à maneira canibal dele, esses experimentos e adicionar outras influências, sobretudo do faroeste, do dramalhão mexicano, dos filmes do Buñuel."

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