São Paulo, sexta-feira, 7 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Filme confere prazer erótico ao aprendizado

JOSÉ GERALDO COUTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No começo (e também no meio e no fim) de "Miramar", como em quase todos os filmes de Julio Bressane, está o mar.
Ondas que se esparramam pela areia ou se chocam contra os rochedos. O mar como puro movimento, atemporal, cíclico, eterno.
Em seguida, há um corte abrupto para o interior de um apartamento burguês, em que pai (Diogo Vilela), mãe (Louise Cardoso) e filho (João Rebello) lêem seus livros em silêncio. O filho é Miramar.
Os planos fixos -mais que isso: congelados- da família lendo contrastam, por um lado, com o que ouvimos na banda sonora: diálogos de filmes americanos ("Macbeth", "Julio César") que falam de traições, assassinatos, reinos esfacelados.
Contrastam também com as imagens hipnóticas do mar em movimento, que ainda vibram em nossa retina.
É essa tensão entre o mar absoluto e a constrição do apartamento, entre o conforto burguês e a aventura da descoberta do mundo, que Miramar vai tentar superar, a partir do suicídio ritual dos pais, na arte do cinema.
Os temas da criação e da morte (Prometeu, Orfeu) atravessam todo o filme -sempre, claro, à maneira de Bressane, espalhando curtos-circuitos semânticos.
Na sequência final, por exemplo, o diretor cruza seu próprio filme "O Anjo Nasceu" (na imagem) com "Rastro de Ódio", de John Ford (no som). Imagine-se a miríade de interpretações possíveis desse choque semiótico.
Como num carnaval de rua, desfilam pelo filme de Bressane Orfeus, Cleópatras e Salomés.
A certa altura de seu aprendizado, em que o prazer erótico se mistura com o prazer do conhecimento, Miramar ostenta, na praia, três livros paradigmáticos: "Brás Cubas", de Machado de Assis, "João Miramar", de Oswald de Andrade, e "Reflexões de um Cineasta", de Sergei Eisenstein.
Mais que simplesmente copiar o caráter fragmentário dessas obras, "Miramar" é uma síntese delas: romance de formação de um artista da elite brasileira narrado de forma conceitual e alusiva, à maneira de Eisenstein.
O velho cine Miramar, no Leblon, depois de exibir o cinema do mundo, abria suas portas para o mar. Não há melhor metáfora do cinema de Julio Bressane.
(JGC)

Filme: Miramar
Direção: Julio Bressane
Com: João Rebello, Giulia Gam, Fernanda Torres, Diogo Vilela, Louise Cardoso Produção: Brasil, 1997
Quando: a partir de hoje, no Cinearte 2

Texto Anterior: Bressane traça gênese de seu "Miramar"
Próximo Texto: Pesadelo vermelho de Bergman está de volta às telas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.