São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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O andar de cima almoçou mal; Um olhar ao Zappa; Notícia boa; Meninos, eu ouvi; Uma idéia ruim, anti-social e demagógica; Uma reforma boa, barata e eficaz; ENTREVISTA; Marco Polo

ELIO GASPARI

O andar de cima almoçou mal
Faz tempo que um simples almoço não mexia tanto com os nervos do governo. Ele aconteceu em Nova York, na quarta-feira, dia 29. Os anfitriões eram os irmãos Edmond e José Safra. Um é dono do Republic Bank, e ambos, do banco brasileiro que leva o nome da família. Estão entre os homens mais ricos do mundo.
Os convidados eram 200, divididos em mesas de dez. Para a crônica dos acontecimentos, só duas mesas têm importância, cada uma presidida por um dos irmãos. Na de Edmond, estavam o embaixador do Brasil em Washington, Paulo Tarso Flecha de Lima, o banqueiro Lázaro Brandão e o empresário José Ermírio de Moraes. Na de José, o ex-presidente Sarney, o deputado Antonio Delfim Netto e o banqueiro Walther Moreira Salles. Serviu-se uma salada com pequenas bolotas (de carne, segundo um convidado, de soja, segundo outro, horríveis segundo os dois), carne e vinho.
O almoço começou às 13h20. É importante ter em mente que, a essa hora de Nova York, eram 16h20 no Brasil. Quando os convidados desceram eram 18h30, em Brasília, e começou uma tempestade telefônica. Por volta da hora do jantar, ela choveu no ouvido de FFHH.
José Safra levantara-se uma vez da mesa e recebera alguns bilhetes. Guardara todos no bolso. Num leram-se duas palavras: "BNDES" e o nome de um banco. Visto que o BNDES não tem problemas próprios, podendo apenas ajudar a resolver os alheios, um dos convidados perguntou: "Quem é o outro?" Safra não respondeu. Os rumores de que havia pelo menos dois bancos brasileiros em dificuldades tinham surgido na terça-feira e naquele salão não havia uma só alma que não os tivesse ouvido.
Edmond Safra disse que desde as 14h o crédito internacional do Brasil estava declinando. Levaram-lhe um papel com dados financeiros banais. Depois, com uma anotação manuscrita, veio-lhe o rumor de que dois bancos estavam em dificuldade.
Terminado o almoço, José Safra e Sarney conversaram um pouco. Segundo Sarney, Safra disse-lhe que a posição do Brasil era sólida e que a América Latina estava relativamente protegida. Outro convidado à mesma mesa não ouviu previsões tão otimistas e absorveu das opiniões de Safra uma mistura de cuidado e discrição.
José Safra nega enfaticamente que ele ou seu irmão tenham discutido a situação brasileira, recebido papéis ou comentado nominalmente a situação de outros bancos. Levantou-se para atender um telefonema, mas era de sua mulher: "Não devia?" Ele acredita que se montou uma rede de intrigas destinada a atingi-lo. Argumenta que circulou um rumor segundo o qual as notícias das dificuldades dos bancos tinham saído de um grande jantar que oferecera na terça-feira. Esse jantar não existiu.
Horas depois, Sarney ligou para FFHH. O presidente já sabia do almoço e tivera uma narrativa sombria. (À noite, o ex-presidente voltou a ter os Safra como anfitriões, num jantar no clube Metropolitan, mas ficou só para os drinques. Se tivesse ficado para a comida ficaria mal sentado, pois não o puseram na mesa principal.)
Os ecos do almoço, bem como a leitura da saída de capitais que buscaram proteção fora do mercado brasileiro, convenceram um pedaço da ekipekônomica de que houve uma relação entre o almoço do Republic e o "horror" (expressão do ministro Pedro Malan) da quarta-feira. No dia anterior, o índice Bovespa caíra bastante e um papel da dívida brasileira chegara a perder 15% de seu valor, levando consigo um pedaço do patrimônio da banca que o usava para fazer apostas. A expectativa em Brasília era de que na quarta as coisas melhorariam. Estavam melhorando nas primeiras horas, mas no início da tarde os títulos caíram, e o dia fechou com um pouco de sofrimento, tanto para o papelório quanto para a Bolsa.
Como sempre acontece durante as crises, é mais fácil caçar o bode. O fato de os convidados terem saído das mesas quando o mercado já tinha fechado foi desprezado. Não se leva em conta que o rumor dos bancos brasileiros era o mais barato da praça. (No dia seguinte ele estaria nas bancas por US$ 0,75, nas páginas do venerando "The Wall Street Journal".) As coisas ficariam mais simples satanizando-se os Safra, mas o problema financeiro nacional continuaria do mesmo tamanho.
As coisas ficariam melhores, muito melhores, se a banca nacional se afastasse da política e do poder. Numa paráfrase de má origem, porém didática, seria o caso de as pessoas botarem na cabeça que banqueiro é banqueiro, governo é governo.

Um olhar ao Zappa
Numa época em que os funcionários público são vistos como fonte de despesa e inutilidade, pede-se aqui que alguém olhe para as estrelas e nelas procure o embaixador Ítalo Zappa, morto, aos 71 anos.
Ele voltou para Barra do Piraí, depois de ter servido ao Brasil ajudando a destroçar a servidão que se dava à política colonial portuguesa na África. Era um dos embaixadores de maior prestígio do Itamaraty, mas nunca chefiou posto em cidade onde houvesse creme de barbear à venda (Maputo, Ho Chi Minh, Havana e Pequim).
Em 1969, quando sua secretária foi presa na Marinha, quis visitá-la. Um oficial tentou intimidá-lo, perguntando-lhe se ia à ilha das Flores em caráter privado. Respondeu-lhe que ia como chefe de gabinete do ministro das Relações Exteriores e que esperava ser recebido com o protocolo de sua função. Quase 30 anos depois, ajudou a reintegrar a funcionária ao Itamaraty.
Na última vez em que falou em público, condenou a transformação da diplomacia brasileira num departamento de vendas para os negócios da ocasião.

Notícia boa
Chega às livrarias nas próximas semanas a reedição do livro "Ana em Veneza", de João Silvério Trevisan.
É um esplêndido romance. Conta a história de três pessoas no verão europeu de 1890. Uma é Julia Mann ("née" Silva Bruhns), nascida em Parati. Outra, a negra Ana Brazilera, babá das crianças de Julia, entre as quais o menino Tommy. (É Thomas Mann, o autor de "A Montanha Mágica".) O terceiro é o compositor Alberto Nepomuceno, chegando a Berlim e perguntando-se o que é a arte brasileira e o que pode vir a ser o Brasil.
Ana vendeu 8.000 exemplares no Brasil. Nepomuceno haveria de rir se soubesse que em poucos dias já se venderam às livrarias 20 mil exemplares da edição alemã. Editou-se até um CD com suas músicas. O leilão da edição de bolso está em US$ 120 mil. O romance será publicado na Itália, Espanha e Holanda.

Meninos, eu ouvi
Já existe uma projeção dos efeitos da nova taxa de juros sobre o conjunto da economia.
Se o Banco Central chegar ao fim de 1998 com uma taxa média de 30%, o Brasil fecha o ano que vem com uma retração de algo como 1% do Produto Interno Bruto.
O número poderia servir aos exercícios de futurologia do ministro Antonio Kandir. Durante a campanha da reeleição, dizia que, com FFHH (e ele) no poder, se fossem mantidas as condições de temperatura, investimento e pressão, o Brasil cresceria a taxas de 7% ou 8% ao ano. (Um trabalho do BNDES, divulgado em maio passado, antevia uma taxa de 5%, mas só em 2002.)
Agora Kandir pode anunciar que o Brasil é forte o suficiente para aguentar os juros Malan-Franco, pois, se repetisse o remédio a cada ano, levaria perto de 70 anos para virar metade do que é. Em menos de 200, acabaria, como acabaram os guerreiros da taba sagrada, os da tribo tupi.

Uma idéia ruim, anti-social e demagógica
Apadrinhado pelos senadores Edison Lobão, Benedita da Silva e Renan Calheiros, tramita no Congresso um projeto que dá aos contribuintes o direito de deduzir do Imposto de Renda a pagar algo como R$ 760 por mês, pelo abatimento dos salários de empregados domésticos.
Talvez seja o único caso do mundo em que se propõe semelhante subsídio às classes média e alta. Há no Brasil 8,7 milhões de pessoas físicas declarando sua renda à Receita. Deles, 4,7 milhões ganhariam o direito de descontar o salário da empregada, do mordomo ou até mesmo da sobrinha que enfiassem na declaração para amaciar o orçamento.
O projeto é inconstitucional, mas uma estimativa grosseira mostra que essa brincadeira custaria em torno de R$ 500 milhões ao Tesouro. Duas vezes mais que a verba orçamentária mandada ao Hospital das Clínicas de São Paulo, onde são atendidos os brasileiros que não têm dinheiro para pagar planos de saúde, que custam pelo menos outros R$ 500 milhões de renúncia fiscal.
Os senadores argumentam que, associando-se esse benefício à obrigatoriedade da carteira de trabalho assinada, desestimula-se o trabalho informal dos empregados domésticos. Se o problema é desestimular a informalidade do trabalho, podem ir à luta para colocar o ministro do Trabalho, Paulo Paiva, nas estatísticas dos desempregados, pois esse problema é dele, e não do Tesouro. O Imposto de Renda não se destina a estimular a assinatura de carteiras, mas a arrecadar um tributo sobre a renda de quem tem, no pressuposto de que o dinheiro vai para um governo preocupado com quem não o tem.
Fica registrado que os peteconomistas, que tanto denunciam as renúncias fiscais concedidas ao empresariado, não estranharam a presença da senadora Benedita da Silva (PT-RJ) no patrocínio dessa associação da demagogia política com o elitismo tributário.

Uma reforma boa, barata e eficaz
Se FFHH quer apressar as reformas, apareceu uma que não custa um ceitil à Viúva, corrige o que pode ser uma maluquice da vida nacional, só faz o mal a quem dele carece e partiu da oposição.
É a emenda constitucional proposta pelo deputado Enio Bacci (PDT-RO) criando a pena de prisão perpétua com trabalhos forçados para criminosos que matam pessoas sequestradas ou estupradas. Ela está na Comissão de Segurança e, dentro de 15 dias, começa a percorrer ritual do Congresso. Se o governo se interessar, vai à votação com rapidez superior à da emenda da reeleição. Se não, mofa.
Em menos de uma semana Bacci conseguiu as assinaturas de 175 deputados. Salvo três notáveis (Inocêncio Oliveira, Arthur Virgílio e José Aníbal), a emenda foi amparada pelo baixo clero. Teve 15 apoios no PT e dois no PC do B.
A Constituição estabelece que nenhum brasileiro pode ficar preso por mais de 30 anos. Bacci sustenta que só quer trancar quem mata pessoas dominadas. (Há pouco uma moça foi morta simplesmente porque o bandido não tinha onde escondê-la.) Ele não incluiu os latrocidas na sua proposta porque a eles pode ser dado o benefício da dúvida de terem matado as vítimas por conta de uma reação.
Há um argumento contra esse tipo de punição. Baseia-se na incapacidade do sistema penitenciário brasileiro de regenerar as pessoas que prende. Bacci rebate: "Eu não estou propondo que essas pessoas se regenerem. Estou propondo que passem a vida na cadeia, regeneradas ou não. E trabalhando para comer".
Esse tipo de criminoso, misturado aos demais, pode contaminar os presídios. Beleza: basta construir cadeias exclusivas para bandidos condenados a prisão perpétua e desejar-lhes boa sorte. Não haverá cidade brasileira que se recuse a financiar uma subscrição pública para a construção desse calabouço.

ENTREVISTA
William Bratton
(50 anos, chefe de polícia da cidade de Nova York durante 27 meses, de 1994 a 1996, atual consultor do governo do Ceará.)
*
- O prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, acaba de ser reeleito montando o sucesso da política de segurança pública que o senhor criou. A polícia brasileira tem jeito?
- Tem. Minha experiência com o Brasil se relaciona com a segurança pública do Ceará. Aqui, o mais importante é a necessidade de coordenação entre o sistema da Polícia Civil e as Polícias Militares. Em vez de combater o crime depois que ele acontece, deve-se trabalhar para impedir que o crime ocorra. Deve-se livrar o cidadão do medo de virar vítima, tirar o medo da rua. Em Nova York, passamos a reprimir a ação de gente que bebe na calçada, que pede esmola de forma agressiva, aproximando-se do cidadão, ou que oferece coisas a quem está no carro. Desde 1990, os homicídios em Nova York caíram 70%, de 2.200 para 700.
- Há algumas semanas reapareceu em Nova York o policial Frank Serpico (Al Pacino, no filme), que levou um tiro na cara porque não aceitava propinas. Ele diz que o policial corrupto tem que ter medo do policial honesto, em vez do policial honesto ter medo do corrupto.
- Nos anos 70 a corrupção policial em Nova York era endêmica. Hoje é ocasional. Você consegue isso mantendo a disciplina, pagando salários que permitam ao policial sustentar uma família. A polícia deve sentir que a comunidade está ao seu lado. Em Nova York, os planos de saúde da polícia não cobrem determinados tratamentos, entre eles cirurgias plásticas complexas. Alguns dos melhores profissionais da cidade tratam dos policiais, sem cobrar. Há uma fundação chamada uma Police Foundation. Neste ano, já levantou US$ 10 milhões junto ao empresariado e a comunidade. Ela sustenta um programa contra o crime. É um telefone para o qual você liga, dá uma pista e recebe uma senha. Tudo anônimo. A recompensa vai até US$ 10 mil. Graças a ele, prenderam-se mais de 500 assassinos e 900 estupradores. Nos últimos anos, todos os crimes significativos ocorridos na cidade foram desvendados com pistas desse tipo. Infelizmente, um deles continua sem solução, o da mulher brasileira que foi assassinada enquanto corria no Central Park.
- O que o senhor acha da lei brasileira que limita as penas de prisão a 30 anos, seja qual for o crime?
- O problema da segurança brasileira está relacionado com a infância da democracia no país. Essa lei pode ter refletido um anseio da sociedade. Nos Estados Unidos, tivemos um período permissivo nos anos 70, e a pena de morte foi abolida. O sentimento popular mudou e, aos poucos, ela foi reinstalada. Num determinado momento, a sociedade brasileira pode vir a querer penas mais pesadas. Quando isso acontecer, será fácil perceber.

Marco Polo
Troca no time: sai Franco Montoro, que confundia o deputado Dante de Oliveira com o poeta Dante Alighieri, e entra Marco Maciel.
Em dois discursos num encontro cultural realizado em São Paulo, chamou o autor de "Gabriela, Cravo e Canela" de "Gilberto Amado" (primo de Jorge, genial memorialista) e teve que procurar nas fichas o nome do prefeito de São Paulo (Celso Pitta).

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