São Paulo, domingo, 9 de novembro de 1997
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O custo da utopia

ROBERTO CAMPOS

Não há quem não sinta perplexidade, e certa angústia, com a situação das partes que restaram da implosão da antiga União Soviética, na segunda metade de 1991. É ainda muito recente, em termos históricos. E a verdade é que pegou todo o mundo de surpresa. E as surpresas continuam.
Nestes dias, por ocasião dos 80 anos da Revolução de Outubro, o jornal russo "Izvestia" publicou uma reportagem, baseada em estudos independentes, segundo a qual o comunismo matou mais de 110 milhões de pessoas -dois terços das vítimas de todas as ditaduras neste nosso século. O campeonato coube à URSS, com 62 milhões. O carniceiro Stálin foi adequadamente caricaturado como um "Gengis Khan com telefone"...
Sabia-se, é claro, que o regime havia chegado ao limite da capacidade de funcionar. Tinha virado uma vasta burocracia cruel e esclerosada, numa economia cada vez menos eficiente, incapaz de um mínimo de competitividade externa. Afinal, o povo se encheu de vez e, diante do resto do mundo boquiaberto, quebrou a "pátria do socialismo" em 15 pedaços. A Federação Russa permanece ainda uma poderosa economia, com seus 17 milhões de km2, 148 milhões de habitantes altamente educados, um PIB (em 1995, em paridade de poder de compra) de US$ 796 bilhões, saldo comercial de US$ 20 bilhões e uma dívida externa de apenas US$ 130 bilhões.
As dificuldades da transição têm sido, porém, enormes. O PIB, por exemplo, está um terço mais baixo do que em 1990. Houve aumento de 10% na pobreza (que hoje afeta 25% da população) e do desemprego (hoje, cerca de 8%, apesar dos paliativos oficiais). O gigantesco programa de reformas de 1992 acabou com o sistema centralizado de distribuição de bens e de comércio exterior e abriu a possibilidade de instituições financeiras privadas, e em 1994 as privatizações foram tão aceleradas que, em 1995, o setor não-estatal já contribuía com 70% do PIB. Ultimamente, o governo tem sido firme na política monetária, conseguindo reduzir a inflação a patamares mais toleráveis.
Mas as reformas institucionais e legais mostraram-se muito mais complicadas. A legislação do mercado de capitais é confusa. Não se conseguiu regular adequadamente a propriedade da terra, base para o desenvolvimento de uma agricultura de mercado eficiente. Um problema crítico tem sido a lentidão no desenvolvimento de uma "rede de segurança" adequada, que alivie o peso (hoje a cargo das empresas individuais) de assegurar benefícios sociais aos trabalhadores.
Por causa da queda dos salários reais, dos atrasos de pagamentos, da ameaça do desemprego, da deterioração do sistema de saúde e do aumento da criminalidade, muita gente se sente hoje pior do que no velho regime, o que resultou numa forte demonstração eleitoral dos comunistas e nacionalistas, em dezembro de 1995. Ninguém quer um retrocesso na liberdade política, mas muitos preferem uma mediocridade econômica segura ao progresso baseado na competição.
O outro grande caco da velha URSS, a Ucrânia, preferiu tornar-se independente em 1991. Cultural e historicamente mais antiga do que a própria Rússia, a terra dos cossacos abriga um povo sofrido, que ao longo da história lutou para manter sua forte identidade. Hoje com 600 mil km2 de superfície, ricas terras aráveis, 52 milhões de habitantes, alto nível educacional e excelentes instituições científicas e tecnológicas, atualmente com um PIB da ordem de US$ 204 bilhões, a Ucrânia dispõe de uma grande base industrial, inclusive com capacidade nuclear e espacial. As dimensões são bastante menores do que as da Federação Russa, mas a base de recursos naturais ucraniana é, em vários aspectos, superior.
Sob o ponto de vista econômico, a estrutura produtiva deixada no país pelo sistema de planificação central é, pelos padrões ocidentais, muito ineficiente. Embora 75% do território do país seja explorado agricolamente, ocupando um quarto da força de trabalho, e sejam famosas as "terras negras" que no império produziam um amplo excedente exportável, sua produtividade, que na era soviética não passava de 50% da média ocidental, caiu mais de um terço entre 1990 e 1996.
As perdas entre o campo e o consumo ficam em torno de 50%. Estima-se que a produção de grãos, atualmente de 21 milhões de toneladas, poderia, com a necessária modernização, ser facilmente elevada para 85 milhões. Praticamente todo o parque industrial se encontra irremediavelmente obsoleto ou desgastado, e serão necessários gigantescos investimentos na infra-estrutura de transportes, comunicações etc.
Tal como na Rússia, a terra ainda não foi efetivamente privatizada. Não se desenvolveram as instituições típicas de uma economia de mercado, como um sistema bancário ágil, e a legislação econômica e fiscal é confusa e inconsistente. Continua a haver muita intervenção estatal desencontrada, e os monopólios estatais persistem nas suas práticas antigas, opondo-se o quanto podem ao processo de privatização econômica. Assim, o país ficou entalado entre o velho e o novo, com todas as complicações imagináveis.
Em 1993, chegou à beira da hiperinflação, com os preços aumentando 10.225%. O sistema orçamentário foi destruído, com um déficit equivalente a quase 19% do PIB. Em consequência, em 1994, o PIB caiu 23%, e a produção industrial, 27%. O equilíbrio monetário está agora, finalmente, sob razoável controle. Mas há a mesma angustiosa falta de competitividade, medo do desemprego e demais problemas que relatamos sobre a Rússia.
Apesar de tudo, porém, a privatização das empresas estatais tem prosseguido, a partir de 1995, em ritmo acelerado. Até abril deste ano, cerca de 50 mil foram privatizadas (sendo 37 mil micro e pequenas empresas), com mais de 22% da força de trabalho e quase um quarto dos ativos totais da economia ucraniana. No campo social e político, a situação é mais ou menos como nas outras antigas repúblicas soviéticas: perplexidade, salários baixos e desalinhados, gente se queixando das aperturas, dos novos ricos, da criminalidade, e há risco de que comunistas e socialistas obtenham maioria parlamentar no ano que vem.
Subestimaram-se tanto o peso brutal do legado socialista quanto as dificuldades da transição, que são mais ou menos como construir uma casa ao mesmo tempo em que se mora nela. A modéstia do auxílio dado pelos Estados Unidos e a União Européia demonstra que foram subavaliados o tamanho da conta e as dificuldades da transição.
Aqui no Brasil, é bom refletirmos. O "Estado a que chegamos" se meteu em tudo e teve a sua versão da "degenerescência burocrática", sem a compensação dos grandes feitos da utopia socialista, como a educação universal e o avanço científico e tecnológico. Felizmente, nosso teimoso setor privado produz gerentes e empresários capazes -recurso insubstituível que falta por completo nos ex-países socialistas.
Também estamos pagando o nosso preço da transição. Mas muito menor do que eles estão enfrentando, e as reformas que entre nós se exigem impõem sacrifícios muito menores que nos países ex-socialistas. Ao nos lamentarmos da nossa "década perdida" dos anos 80, lembremo-nos que o comunismo impôs às ex-repúblicas soviéticas a perda de sete décadas.
Os povos eslavos, pelos quais paradoxalmente Marx e Engels tinham visceral desprezo, possuíam, desde o antigo regime, áreas de excelência cultural. Estariam muito melhor se em 1917 tivessem seguido o caminho da sensatez democrática, ao invés de se entregarem à mais violenta das utopias, que deforma o homem sob o pretexto de reformá-lo.

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