São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 1997
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"El abrazo porteño"

JOSÉ SERRA

"Existem quatro tipos de países no mundo: os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina."
A frase do professor Simon Kuznets resumiu uma percepção intrigante: a pujança econômica japonesa e o rodopiar econômico argentino são singulares, inexplicáveis sob os critérios tradicionais da análise do desenvolvimento.
Em pelo menos dois aspectos, a Argentina é o contrário do Japão: não há pressão demográfica e sobram terras férteis e recursos naturais. Além disso, é um país com razoável padrão educacional e cultural. Possui até melhores economistas (e psicanalistas) do que o Japão ou o Brasil.
Finalmente, nações de perfil mais próximo a ela, como Austrália, Canadá e Nova Zelândia, há muito integram o clube das nações mais ricas. Mas a Argentina ficou de fora.
Nesta década, porém, o vizinho platense realizou uma bela inflexão na sua trajetória de crescimento. Quanto essa fase durará não sabemos, mas ela já marcou época.
Vejam só: entre 1929 e 1980, a economia argentina cresceu só 3% ao ano, cerca da metade do ritmo brasileiro. Mas, após estabilizar sua economia, em 1991, o país de Maradona cresceu 5,5% anuais (90-97), ou 4,7% por habitante, mais de dois pontos acima do Brasil, desde o Plano Real.
O melhor desempenho argentino deve-se a quatro fatores. Primeiro, sua moeda não foi tão rápida ou intensamente sobrevalorizada quanto o real. Em parte por isso, sua taxa real de juros tem sido um terço da nossa, impulsionando investimentos. Esse fato e os aumentos de receita tributária decorrentes do crescimento evitaram a expansão do déficit público, sempre abaixo da metade do brasileiro.
Por fim, os ganhos de produtividade, o Mercosul e a sobrevalorização do real em relação ao peso permitiram um crescimento vertiginoso de suas exportações, fenômeno que não se observou no Brasil.
Diga-se de passagem que os argentinos não têm se furtado a incursões na heterodoxia: fizeram o regime automotivo, pagaram gastos do governo e do Proer de lá com privatizações, subsidiam suas exportações ("reintegro" de US$ 470 milhões até setembro de 1997), cobram duas tarifas extras sobre as importações (taxas de estatística e de embarque).
Além disso, mantiveram facilidades especiais para substituir o Brasil na exportação de soja esmagada, desde que a desestimulamos a partir da chamada Lei Kandir.
Esse balanço mais favorável tem, no entanto, uma contrapartida apreciável de problemas. Primeiro, o padrão-dólar argentino, que, à semelhança do regime monetário do padrão-ouro, só funciona bem quando tudo vai bem na economia internacional. Segundo, o elevado desemprego aberto, na ausência de um colchão amortecedor do tamanho do setor informal brasileiro.
Terceiro, o caráter reflexo em relação à nossa economia, que absorve um terço das suas exportações e mais da metade de sua produção de automóveis. Não é por menos, aliás, que os argentinos acreditam que o principal risco para a sua economia, hoje, reside numa eventual desestabilização da economia brasileira.
Por isso tudo, agora, além de "fortalecer os laços etc.", é preciso promover um abraço econômico construtivo entre os dois países, que vise cortar mecanismos de propagação doméstica de crises externas, prever exceções quanto aos efeitos de eventuais medidas adotadas e limpar permanentemente as picuinhas recíprocas de cada dia. O oposto de um abraço de afogados diante das adversidades da economia internacional.

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