São Paulo, segunda-feira, 10 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Globalização rouba alma de Buenos Aires

CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL

Apaixonei-me por Buenos Aires à primeira vista. Era 1973. No Brasil, reinava a "paz dos cemitérios" do governo Médici. Na Argentina, bem ao contrário, vivia-se a incrível efervescência do retorno do peronismo ao poder, depois de 18 anos de banimento.
Tentava chegar ao Chile, mas o país estava fechado por terra, mar e ar, para a carnificina que se seguiu ao golpe de Estado liderado pelo general Augusto Pinochet, até hoje comandante-em-chefe do Exército chileno.
Uma noite, já bem tarde, regressava ao hotel, frustrado por não encontrar meios de chegar a Santiago. De repente, um grupo de jovens, estudantes da UBA (Universidade de Buenos Aires), entrou pela Florida, o fulgurante calçadão central de Buenos Aires.
Cantavam: "Allende no se suicidó/yankis lo mataron/a la puta que los parió".
O reflexo condicionado me fez procurar refúgio com os olhos. Imaginei que a polícia, como acontecia no Brasil, logo surgiria e cobriria de pancadas a moçada. Sempre sobrava alguma para os circunstantes. Nada. A garotada deu voltas e voltas no quarteirão com seu cântico debochado.
Se se respirava ainda na América do Sul, o pulmão era a Argentina. Não durou muito, é verdade. Menos de três anos depois, também a Argentina caía sob uma ditadura militar.
Modernidade portenha
Voltei incontáveis vezes à capital argentina, vivi na cidade três anos como correspondente da Folha.
A paixão escondia seus defeitos. Tanto que só na viagem mais recente (para cobrir as eleições legislativas do dia 26 de outubro), me dei conta de algumas mudanças fundamentais em Buenos Aires.
Exemplo: a mitológica esquina das ruas Florida e Corrientes. De um lado, surgiu um Burger King. Em frente, agência do Itaú. Nada contra um ou outro. Mas para encontrá-los, não é preciso toda uma Buenos Aires. Qualquer Madureira ou Jabaquara também têm.
Na esquina seguinte, um Hãagen-Dazs, delicioso sorvete, mas que Buenos Aires pode dispensar por ter o Freddo, incomparável.
Tudo somado, desconfio que a tal de globalização é uma espécie de bomba de nêutrons: não destrói as pessoas nem os prédios da cidade. Mas rouba-lhe a alma.

Texto Anterior: Aliança impõe derrota ao peronismo
Próximo Texto: Anel viário do Alasca é percorrido de balsa
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.