São Paulo, domingo, 16 de novembro de 1997
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A crise e o perdão

ALOIZIO MERCADANTE

Estamos assistindo a crise da abertura financeira e comercial dos países subdesenvolvidos, os chamados "emergentes". A velocidade fantástica dos contágios sucessivos é um fato novo, decorrente da integração dos mercados e da ausência de mecanismos regulatórios eficazes. Mas a natureza da crise está nas reformas liberalizantes impostas aos países subdesenvolvidos pela agenda neoliberal.
A origem e epicentro da crise é o Sudeste Asiático. Neste momento, a Coréia parece ser a próxima vítima de um ataque especulativo, que poderá forçar uma desvalorização selvagem da moeda. O sistema bancário da região, incluindo o Japão, deverá enfrentar uma inadimplência monumental, estimada em até US$ 600 bilhões. Portanto, a instabilidade financeira internacional poderá ser prolongada, impondo severas restrições econômicas aos países subdesenvolvidos.
Na crise está ocorrendo o fenômeno clássico da fuga indiferenciada, uma saída desordenada dos países "emergentes" e uma procura crescente por aplicações seguras, especialmente os títulos do Tesouro norte-americano (os T-bonds já estão a 6,09% a.a.).
A crise veio de fora, mas o Brasil foi o país mais atingido de toda a economia internacional.
As Bolsas brasileiras desabaram, com perdas significativas de reservas. Estamos sofrendo uma crise de confiança na moeda.
A política econômica do governo centrada na âncora cambial/juros elevados permitiu uma estabilidade dos preços, decorrente do crescimento explosivo das importações que pressionavam os preços internos. Entre 1994 e 1996, as importações cresceram 22,5% a.a., passando do patamar de US$ 25 bilhões em 1993 para aproximadamente US$ 63 bilhões em 1997. As importações de bens de consumo cresceram 31,1% e as exportações mantiveram uma taxa de apenas 4,7% ao ano.
A estabilização dos preços foi acompanhada de profundos desequilíbrios nos fundamentos macroeconômicos. Uma vulnerabilidade cambial crescente, com um déficit de transações correntes que passou de US$ 1,7 bilhão em 1994 para US$ 34 bilhões em 1997.
Como vínhamos advertindo há algum tempo, essa estratégica era insustentável e estava expondo o país a um crescente risco cambial. A deterioração das finanças públicas com o crescimento brutal da dívida pública mobiliária federal, que já supera os R$ 200 bilhões, era outra vulnerabilidade decorrente da armadilha âncora cambial/juros elevados.
A fragilidade dos fundamentos macroeconômicos promovia comparações inevitáveis com outras economias vítimas de ataques especulativos, como o México em 1994 e os países do Sudeste Asiático.
Portanto, a crise financeira é produto da globalização, mas o caso brasileiro, ao contrário do discurso oficial, é decorrente dos profundos equívocos da equipe econômica. O próprio Gustavo Franco escrevia em junho de 1996 que "o nível correto e prudente para o déficit em conta corrente é alguma coisa intermediária que se parece com o observado para o conjunto das chamadas economias emergentes, e que parece se situar na casa dos 3% do PIB".
Porém, quando o déficit brasileiro já superava os 4,2% do PIB, Gustavo Franco construía a nova teoria do "déficit bicicleta" e afirmava que não importava o tamanho do déficit comercial, porque seria sempre financiável. As advertências da oposição eram nhenhenhém dos derrotados. A "bicicleta" caiu. O tamanho do tombo é que precisamos avaliar.
O problema agora não está apenas no déficit de transações correntes, mas na própria conta de capitais, onde o país já está exposto a dificuldades imprevisíveis e um custo adicional para captação de recursos.
A resposta do governo na crise foi tentar defender as reservas cambiais dobrando as taxas de juros, a clássica resposta dos desesperados. FHC achou que o real era uma muralha. Ao mesmo tempo, desencadeou uma operação política leviana, tentando jogar sobre o Congresso, e mais particularmente sobre a oposição, o ônus da crise. Nós, que tivemos a grandiosidade de não atacar o governo quando havia o risco concreto de um ataque especulativo, tivemos mais uma vez como resposta a prepotência e a arrogância.
A crise continuou seu curso, indiferente à fogueira das vaidades dos políticos. Na segunda-feira, o governo decretou um pacote fiscal que jogava por terra o discurso de que o problema eram as reformas e a oposição, com um ajuste projetado em R$ 20 bilhões.
As elevadíssimas taxas de juros, caso venham a ter uma queda linear ao longo dos próximos 12 meses, para então retornar às taxas pré-crise, terão um impacto de R$ 28 bilhões nas finanças públicas. O pacote apenas absorve parte do impacto dos juros sobre as finanças públicas. Além disso, foi improvisado e socialmente perverso.
Retirar R$ 310 milhões da LOAS é penalizar os mendigos e deficientes. Cortar R$ 100 milhões de bolsas de estudos é condenar de forma irremediável o futuro de muitos jovens, pobres e esforçados. Os funcionários públicos continuam como bodes expiatórios. Depois de três anos de arrocho salarial, e o governo não corta verbas de propaganda ou transferências voluntárias, mas vai demitir 33 mil funcionários públicos, além de atingir pensionistas e aposentados. E principalmente vai reduzir as deduções do IRPF, aumentar em 10% as alíquotas e elevar o preço dos combustíveis. Socializa os prejuízos com os de baixo, com os de sempre.
O pacote não teve nenhum impacto sobre a crise de confiança dos investidores. A Bolsa continuou caindo, porque o problema é o balanço de pagamentos. Indiretamente, a recessão profunda que está sendo imposta pelos juros e pelo pacote irá reduzir o déficit comercial e aliviar o balanço de pagamentos, mas a única medida orientada para o centro do problema foi o modesto aumento das alíquotas dos importados em 3%. As últimas medidas que encurtam os prazos de financiamentos externos podem ser um estímulo imediato, mas irão concentrar os compromissos externos no futuro, aumentando a fragilidade cambial.
O governo subestimou a crise, não estava preparado e respondeu de forma precária, improvisada e com elevado custo social.
O país está diante de dois cenários. O primeiro seria um desdobramento rápido da crise asiática. O fim da instabilidade financeira internacional, acompanhada por uma recessão profunda no Brasil, neste final de ano e primeiro semestre de 1998, afastaria a ameaça de um ataque especulativo da moeda. Esse cenário permitiria ao país, após a crise, administrar um ajuste progressivo e cuidadoso na taxa de câmbio. O governo deverá insistir na política de liquidar o patrimônio público estratégico, muitas empresas privadas irão quebrar em função dos juros e da recessão, a inadimplência será elevada e o desemprego crescerá violentamente. Mas o país teria condições de afastar o desastre imediato, adiando o impasse para o futuro governo.
O segundo cenário seria marcado por um aprofundamento da crise asiática, continuadas perdas de reservas e fragilização cambial do país. O mercado, nesse contexto, poderá ajustar a taxa de câmbio por meio de um ataque especulativo contra a moeda. Os especuladores deflagrariam uma recessão de graves proporções, com um custo econômico e social dramático, à semelhança do México, onde o PIB caiu 6,9% em 1995, e da experiência recente do Sudeste Asiático. Devemos lutar para afastar de qualquer forma esse segundo cenário. Por isso na crise o governo está imobilizado diante da taxa de câmbio.
Para finalizar, independentemente de qual venha a ser o cenário, é obrigação histórica proteger os mais frágeis na crise. Medidas de proteção contra as importações predatórias; eliminação da TR preservando a caderneta de poupança; iniciativas para renegociação de dívidas dos pequenos devedores; revisão das medidas tributárias, penalizando os que podem e devem contribuir como os detentores de grandes fortunas, os lucros extraordinários das empresas, cartão de crédito das viagens ao exterior; aumento da abrangência do seguro-desemprego; redefinição do papel do BNDES, que em vez de financiar as privatizações como fez na CPFL, deveria estar fomentando setores estratégicos na geração de empregos. São medidas possíveis e socialmente fundamentais.
A ativação das câmaras setoriais para viabilizar acordos tripartites, especialmente em setores estratégicos no nível de emprego, com a redução de impostos e margens de lucros, alavancando as vendas, pode ajudar a amortecer o impacto da recessão que já está em andamento. Nesses acordos o governo arrecada pelo volume e não pela sobretaxação das vendas em queda, como está fazendo com os automóveis, e a contrapartida seriam metas de emprego e manutenção da estabilidade dos preços pactuadas na câmara.
O fundamental é a percepção de que esta é a crise da abertura comercial e financeira dos países "emergentes", é a crise do projeto neoliberal que vem orientando esta marcha da insensatez que conduz o governo FHC e o Brasil. Com o impeachment de Collor atrasamos o ajuste neoliberal. Seu caráter tardio ainda permite uma revisão completa desse rumo. Resta saber se seremos capazes de aprender com mais essa crise. No entanto, esse é assunto para um novo governo, que não subordine os destinos de um povo à lógica do capital especulativo internacional, pois, como escreveu L. F. Veríssimo, "ser neoliberal é não pedir perdão".

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