São Paulo, quarta-feira, 19 de novembro de 1997
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Quem brinca com corda deve entender de nó

ELIO GASPARI

Um dia desses, FFHH pode convocar uma entrevista coletiva anunciando o seguinte:
1) "Fui eleito pelo Plano Real, que significou o fim de meio século de inflação";
2) "Em três anos de governo, mantive a estabilidade da moeda. Consegui isso porque o Plano Real tinha bases mais sólidas que os anteriores e porque resisti às pressões políticas e sociais que poderiam provocar um novo surto inflacionário";
3) "A crise financeira em que estamos exige um rigor antipático e -por que não dizer?- recessionista. Isso significa sofrimento e desemprego";
4) "Eu pretendia disputar a reeleição, mas as circunstâncias demonstram que a candidatura de um presidente -seja ele quem for- é incompatível com o grau de liberdade essencial à condução de uma política econômica que preserve a estabilidade da moeda";
5) "Tendo que escolher entre o Real e o Planalto, fico com o Real e não disputo a reeleição".
Poucos presidentes brasileiros gostaram tanto dos confortos do poder.
Das portas que se abrem sozinhas à adega (cuja chave ele diz que guarda consigo). Da parede de espelhos do Alvorada ao helicóptero que o espera na pista de Guarulhos e pousa no campo do estádio do Pacaembu, iluminado só para ele.
Pois esse mesmo presidente pode convocar uma entrevista coletiva e anunciar a proposição que parece implausível.
É improvável, porém plausível, porque aquilo que em FFHH parece ser apenas vaidade é também uma couraça que esconde o tormento das dúvidas.
Em 1994, depois de ter começado a reforma monetária, ele dizia que não tinha decidido se candidatar a presidente da República. Era verdade, queria ser presidente, mas estava em dúvida. Não acreditar nisso significa mutilar a compreensão de sua complexa personalidade.
Como lhe falta o defeito da soberba, governou com a imponência de uma palmeira no gramado. Produziu um sistema de decisões claustrófilo e permitiu que sua política econômica deslizasse para uma aposta. O ano eleitoral poderá seduzi-lo a jogar para a galera, piscar para a inflação e naufragar, como aconteceu a todos os seus antecessores que tentaram esse pulo. Se não gostar desse caminho, arrisca uma derrota eleitoral ou fecha o jogo e vai para o circuito Ibiúna-Paris-Higienópolis.
Quase todos os ingredientes desse dilema contêm ardis. Pode fracassar mesmo conseguindo a reeleição, assim como pode se reeleger numa recessão. (O presidente da Argentina conseguiu, mas seu ocaso faz dele um tipo, não uma meta.) A questão não está no dilema em si, mas na maneira como FFHH vai olhá-lo na hora de decidir. Sua tendência sempre foi apostar no seu taco, mas, precisamente por ter acumulado imenso patrimônio político, pode resolver não apostar contra FFHH.
Há um ataque especulativo contra o verbete de Fernando Henrique Cardoso na "Enciclopédia Britânica", e o único paralelo histórico disponível, fora das experiências ditatoriais, é o do presidente Campos Salles (1898-1902), numa República em que não havia reeleição. Saneou as finanças públicas, voltou para casa e viu o país entrar num período de esplendor na gestão seguinte, de Rodrigues Alves. Se fez isso pensando na história, deu-se mal. Nos anos 70, o professor Fernando Henrique Cardoso escreveu um artigo sobre o amanhecer da República Velha e se mostrou insensível às virtudes que hoje vêem em Campos Salles. O projeto pessoal de FFHH era virar Rodrigues Alves (chamando-o de Juscelino Kubitschek para agradar aos marqueteiros), mas ele ficou um pouco mais difícil e muito mais arriscado.
E o que acontece se FFHH atear fogo às vestes? Cada um pode montar o cenário que quiser, pois o que importa, no caso, não é o itinerário do raciocínio, mas seu ponto de chegada. Aqui vai um:
1) rompe-se a aliança PSDB-PFL;
2) o PFL lança candidato próprio e, seja ele quem for, terá um paredão pela frente depois da primeira esquina da centro-esquerda;
3) o PSDB lança um candidato que, tendo alguma capacidade de movimento à direita, poderá reaglutinar a esquerda. O governador de São Paulo, Mário Covas, por exemplo, pode ser apoiado pelo PT e -por que não?- por Ciro Gomes.
Em qualquer caso, o sucessor de FFHH chegará ao Planalto a bordo de uma monumental injustiça política. Receberá o país com moeda estável, à maneira de Campos Salles, e terá as verbas para representar o papel de Juscelino Kubitschek. Tudo isso à custa da opção de FFHH pelo Real.
São meras conjecturas, mas na história só acontece aquilo que alguém conjecturou. Restam duas perguntas:
1) vale a pena? Se vale, tudo bem;
2) se não vale, o que é que se pode fazer para impedir que a corda seja enrolada de forma a acabar nesse tipo de nó? Ou ainda, o que FFHH pode fazer?

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