São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Das tulipas a Hong Kong

JOSÉ SERRA

Na Holanda, há 361 anos, culminou uma arrebatadora paixão financeira pelas tulipas, isso mesmo, aquelas plantas estilo bulbo, divididas em cem espécies, contendo flores solitárias e em forma de sino, mas sem o perfume ou a beleza da rosa.
Nos anos recentes, em Hong Kong, a Bolsa e o mercado imobiliário vinham exercendo uma enorme atração sobre investidores, exibindo um dos maiores charmes econômicos deste fim de século.
Perguntará o leitor: o que tem a ver as tulipas com a Bolsa e os imóveis de Hong Kong? A resposta é: tudo.
Ambos foram objeto do mesmo fenômeno: um comportamento compulsivo dos agentes econômicos diante do que se conhece como corrente da felicidade. Entra-se num mercado, de ações, imóveis, moedas, tulipas, rapé ou o que seja, onde a crença na valorização dos ativos comprados é garantida pela crença de que essa valorização continuará aumentando, o que de fato acontece. Enquanto essa profecia vai se auto-realizando, mais dinheiro (mesmo emprestado) continuará ingressando no circuito. Ninguém perde, todos ganham.
Tudo vai bem, tudo legal, até o dia em que alguns investidores ou emprestadores mais prudentes ou espertos percebem que a loucura não vai continuar para sempre e pulam fora. A corrente da felicidade começa a dar marcha a ré.
No pânico, os investidores comportam-se como as gazelas da África. Elas sempre correm quando vêem um leão. Outras correm porque pensam que viram um leão. E há aquelas que também correm, pois, embora não tenham visto nada, percebem que as outras gazelas estão correndo. Assim agiram os holandeses das tulipas e os investidores da Ásia.
A euforia especulativa resulta sempre de um movimento coletivo, de uma multidão, na qual o indivíduo passa rapidamente do bom senso à estupidez. Além disso, como lembra Galbraith, "o episódio eufórico é protegido pelo desejo dos que nele estão envolvidos, a fim de justificar as circunstâncias que estão tornando-os ricos". Não faltam, também, nesses ciclos, pessoas vistas como conhecedoras dos mercados e merecedoras de deferências, posando como charmosos modelos aos candidatos ao enriquecimento.
Finalmente, os episódios especulativos só se repetem porque a memória financeira é curtíssima, não há aprendizado e a história não é nunca levada em conta. Os governos até que aprenderam alguma coisa -especialmente depois do colapso de 1929-, mas as manadas de indivíduos não.
Exemplos de loucuras? Na Holanda, em 1636, uma tulipa chegou a valer de US$ 25 mil a US$ 50 mil, a preços de hoje. Em Tóquio, até recentemente, a área do palácio imperial, a preços de mercado, valia mais que o território da Califórnia.
Seja por isso, seja pelo que for, as explicações mais comuns das quebras das Bolsas e de seu alastramento pelo mundo são tautológicas e confortáveis para aqueles que convocaram os investidores a integrar-se às correntes da felicidade. Um exemplo? "A Bolsa caiu porque subiu muito." Assim, chega-se ao culpado: tudo foi obra de Newton, o descobridor da lei da gravidade.
É uma constatação que agradaria ao primeiro-ministro da Malásia que, psicografando preconceitos nazistas, já havia atribuído a culpa da atual crise cambial do Sudeste Asiático aos especuladores sionistas. E agora, vejam só, descobre-se o envolvimento de Isaac Newton com as Bolsas, ele que também era judeu.

Texto Anterior: Governo podre
Próximo Texto: A responsabilidade das TVs
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.