São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 1997
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A responsabilidade das TVs

MARTA SUPLICY

Abordar a ética, a qualidade dos programas de TV e o controle público dos meios de comunicação -que, não esqueçamos, são concessões públicas- não é novo. Hoje, essa é uma discussão complexa, com novos elementos.
Durante a ditadura, sofremos todo tipo de cerceamento à liberdade de opinião, de expressão cultural e de ideologia, sem contar as diferentes formas de repressão que deixaram profundas marcas na nossa sociedade.
Entretanto, em vista da indignação de grande parte da população diante do baixo nível da programação, não podemos fazer com que nossa triste experiência inviabilize a retomada da discussão sobre direitos do telespectador.
É falso o dilema colocado por alguns que postulam que qualquer interferência no monólogo televisivo seja a volta à censura. Países como Inglaterra, Espanha, Suécia e França possuem órgãos que acolhem reclamações do público para avaliá-las e encaminhá-las às TVs.
Essas instituições, que atuam a partir da manifestação do telespectador, têm poder de pressão -seja pelo impacto na opinião pública, seja por seu poder de multar o canal se, após a advertência, quando a queixa é vista como procedente constitucionalmente e conforme normas de concessão pública, ele persistir na apresentação do material. Nenhuma tem poder de censura prévia.
O que orienta as comissões depende de cada país. Na Suécia, é a lei da livre imprensa, promulgada em 1796 e revista com o surgimento da TV. Na França, a finalidade é assegurar a igualdade de tratamento, favorecer a livre concorrência e a expressão pluralista de opiniões e preservar a língua francesa.
Além da questão da qualidade das programações, também sabemos que a "privatização da liberdade de expressão" é uma forma de restrição do direito universal e individual de acesso à cultura e à informação. Sob o manto da liberdade de expressão encobrem-se formas dissimuladas de censura -não a institucional, do Estado, mas a de grupos econômicos e políticos donos de emissoras e redes de TV, que definem o que a população deve saber.
O grupo TVer, que busquei articular, é constituído por profissionais de diferentes áreas e nasceu da preocupação com essas questões. Especialistas em sexualidade infantil, saúde mental, filosofia, comunicação e direito se reúnem sistematicamente para refletir sobre o que vemos na TV e suas consequências no desenvolvimento das personalidades. Estimulamos o surgimento de grupos dessa natureza por todo o país.
Percebe-se a impotência da sociedade diante do monólogo das emissoras, que usam concessões e instrumentos de domínio público (as ondas) para impor o que definem ser de seu interesse.
Estamos propondo que a sociedade se organize, pressione as emissoras, os anunciantes -enfim, crie uma manifestação tal que as televisões passem a não se guiar somente pelo Ibope.
Não duvido dos números. À medida que os programas se caracterizam por apresentar perversidades, o ser humano é facilmente fisgado. Todos temos aspectos sadomasoquistas, voyeuristas, exibicionistas amplamente saciados por esse tipo de programação.
Entretanto, apesar da alta audiência, é difícil acreditar que o povo ache esses programas maravilhosos e não goste de ter alternativas de melhor qualidade. Pesquisa recente do Ministério da Justiça apontou nitidamente nessa direção.
Num país com tão poucos recursos dedicados à educação, seria natural que as emissoras também se responsabilizassem pelas consequências desse tipo de programação. Isso nada tem a ver, porém, com a censura pregada por grupos retrógrados. O TVer quer ampliar esse debate, que já começa a surtir algum efeito nas programações.
Os abusos que condenamos dizem respeito ao estímulo à violência, ao desrespeito a direitos elementares de cidadania (presunção de inocência, preservação da intimidade, impedimento de exposição a situações humilhantes), à disseminação de preconceitos, à discriminação e à erotização desmedida e irresponsável das crianças.
Nosso objetivo é o de exigir compromisso dos meios de comunicação com princípios éticos e respeito à cidadania de crianças e adultos.
Manipulação da informação e dos meios de comunicação, liberdade de expressão e censura são questões interligadas. Exigem discussão e equilíbrio para a preservação de ideais democráticos, sem que se confunda controle social com censura arbitrária.
Temos de nos prevenir em relação aos que querem pegar carona na indignação popular com o destempero da televisão. Como exemplo, pode-se citar a inclusão de um item na legislação tributária aprovada em Araraquara, nos últimos dias, que "proíbe a comercialização de folhetos, panfletos, livros ou gravuras de caráter obsceno ou subversivo" em bancas de revistas.
É uma legislação inconstitucional e perigosa, fruto da arbitrariedade de poderes constituídos, agredindo os mais elementares direitos conquistados. Esse parece também ser o caso do delegado de Brasília que decretou a prisão do Planet Hemp. Esse é o perigo que ronda uma democracia ainda em construção.
Não queremos cerceamento baseado em falso moralismo, muito menos em patrulhamento ideológico. Não apoiamos nenhum retrocesso no direito à liberdade de expressão e manifestação de opinião. Temos, sim, de exigir de quem tem concessão pública cumprimento de obrigações éticas e da legislação vigente -que inclui compromissos das TVs com o respeito à diversidade cultural e a promoção da cultura-, além do respeito à cidadania.
Os democratas devem reagir a tudo que fira esses princípios, como também a qualquer tentativa de censura, controle arbitrário e patrulhamento moralista ou ideológico.
Esses são temas sobre os quais o Congresso tem de se pronunciar. Para tanto, tenho me empenhado na criação de uma comissão especial mista para tratar das consequências da programação da TV e dos direitos do telespectador.

E-mail: msuplicy@solar.com.br

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