São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 1997
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Aborto, a busca da verdade

ALOYSIO NUNES FERREIRA FILHO

O debate sobre o aborto está longe de terminar. A cada dia, novas contribuições, novas faces do que cada um pretende que seja a verdade aparecem impressas nos jornais. A recente visita do papa João Paulo 2º ao Brasil, além de ter contribuído para aumentar os decibéis da polêmica, estimulou-a.
O debate começou com a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, em agosto passado, do projeto dos deputados Sandra Starling (PT-MG) e Eduardo Jorge (PT-SP) que considera obrigatório o atendimento dos casos de aborto autorizados pelo Código Penal pelos hospitais ligados ao SUS (Sistema Único de Saúde). Quais são eles? Dois: 1) o chamado aborto terapêutico (para salvar a vida da gestante); 2) o sentimental (para interromper a gravidez resultante de estupro).
Um recuo de algumas décadas no tempo, para entender melhor a discussão. Nosso Código Penal é de 1940, quase sexagenário. Há 57 anos vigora seu artigo 128, o tal que não pune a prática do aborto nos casos citados.
Mesmo assim, ao longo desses anos, os dois tipos de aborto continuaram a ser vistos como crimes. Os médicos dos hospitais públicos, sobretudo no interior, apesar de protegidos pelo art. 128, resistem o quanto podem a realizá-los. Temem, principalmente, a ira da Igreja Católica em suas comunidades.
A rigor, o projeto em tramitação no Congresso não seria necessário. Se o código autoriza o aborto nos casos de estupro e de ameaça à vida da gestante, cumpra-se a lei. Mas a regulamentação foi a saída encontrada diante da resistência dos hospitais da rede pública, os únicos com que contam as mulheres pobres na hora da emergência.
Calcula-se que ocorram no Brasil, a cada ano, quase 1,5 milhão de abortos. Cerca de 300 mil internações para curetagem de abortos desastrosos são realizadas anualmente no país. No universo desse número impressionante, os abortos em casos de estupro ou de risco de vida da gestante estão, no máximo, na casa das centenas.
Então, como se vê, o projeto contempla uma pequena, ínfima ponta de um gigantesco iceberg. Representa, no entanto, um passo da maior importância, especialmente pelo seu simbolismo.
Por quê? Sua aprovação mostrará que o Congresso legisla para todos os brasileiros, não apenas para esta ou aquela religião. Com todo o respeito à Igreja Católica, que não admite o aborto em nenhuma circunstância, a Comissão de Constituição e Justiça agiu corretamente. A maioria de seus membros mostrou sensibilidade e bom senso, não se deixando impressionar pelos gritos e ameaças dos grupos que invadiram o edifício da Câmara no dia da votação.
Amanhã teremos, certamente, novos enfrentamentos entre ativistas contra e a favor do aborto. O projeto será discutido em audiência pública na Câmara.
Escaramuças à parte, o projeto de Sandra Starling e Eduardo Jorge deverá ser aprovado pelos plenários da Câmara e do Senado. Mas o mais importante é que, depois disso, o debate sobre o aborto prossiga. Afinal, a face mais perversa do problema persistirá.
Os milhares de abortos que o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais consideram desastrosos não são realizados nas clínicas de luxo, que sempre existiram e continuarão a existir, mas em consultórios clandestinos, situados nas periferias miseráveis.
São milhares de mulheres pobres que saem todos os anos dessas "clínicas" definitivamente inutilizadas para a procriação. O que é pior: muitas nem sequer recorrem ao médico ou a uma parteira -tentam dar cabo à gravidez recorrendo, solitárias, a agulhas de tricô, penas de galinha ou substâncias nocivas injetadas com seringas.
Essa, creio, deverá ser a matéria-prima dos próximos capítulos do debate.

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