São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 1997
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100 anos de CYRANO

MATHILDE LA BARDONNIE
DO "LIBÉRATION"

No velho bairro da cidade de Bergerac, em uma simpática e calma praça não longe do mercado coberto, a estátua quase bonachona e tranquila de Cyrano, com sua capa de pedra, é constantemente separada de seu famoso nariz.
Ato de vândalos? Tara de fetichistas? A não ser que fosse extremamente tentador. E é. Provoca a visão e o espírito, esse nariz.
Os funcionários municipais, com indulgente perseverança, várias vezes ao ano substituem o apêndice, reajeitam a pedra, reconsertam o monumento. Fixam esse objeto, quase mítico. Poleiro de passarinhos. Suporte para chapéus.
No último verão europeu, pouco antes do final da temporada julho-agosto, pela primeira vez nessa cidade da região francesa do Perigord, foi montada a comédia heróica em cinco atos e em versos de Edmond Rostand, "Cyrano de Bergerac", escrita há um século.
Ele bem sabia que seu herói, Hercule-Savinien de Cyrano de Bergerac, vindo ao mundo em 1619 com um nariz para lá de proeminente, não era filho desse sudoeste, mas havia visto a luz do dia em pleno coração de Paris.
Seus pais, que de gascões nada tinham, se chamavam Abel e Espérance. Um prenúncio para esse caçula de sete filhos, que amaria os duelos, os poetas, a física, a filosofia de Gassendi, seu mestre, e atacaria tanto os conformismos religiosos como sexuais, pregando a razão e o pacifismo. Tudo isso se dizendo romancista do gênero científico.
Cyrano de Bergerac, um tipo bastante sóbrio, sucumbira aos 36 anos, em consequência do choque de um pedaço de madeira que caiu de uma janela sobre sua cabeça. Nunca se soube se foi assassinato ou simplesmente o acaso.
"O destino é traiçoeiro", Edmond Rostand fez seu personagem dizer em seu último suspiro, revelando à Roxanne, virgem e viúva em seu convento, que era ele o autor das cartas de amor do belo e bobo Christian.
Após 14 anos de silêncio sobre a verdade -a benévola mentira de ter dado conteúdo a um "irmão" que só tinha forma-, eis essa mulher perdendo o mesmo homem duas vezes.
Enquanto ela lhe suplica -"viva, eu vos amo"- e constata que tudo na vida lhe faltou, até mesmo a morte -"É assassinada em uma emboscada/ Por detrás, por um lacaio, de uma paulada"-, Cyrano deixa sua alma junto a uma árvore, como Roland, como Bayard.
Esses versos foram ditos novamente neste ano, à margem do suave rio Dordogne, onde o diretor Pierre Debauche foi convidado a instalar seu cenário. Onde atuaram não menos de 55 personagens, a maioria jovens atores ou figurantes.
Ali, sobre o cais do velho porto do rio Espérance, onde a carruagem de Roxanne se transformava em embarcação, deslizando na penumbra. Ali, naquele céu aberto tão propício ao gênero capa-e-espada, a cena do último suspiro ecoou.
Quando o jovem e prodigioso ator Didier Kersten, 28, executou a última fala, pode-se dizer, uma vez mais, que essa peça continua uma pura maravilha. Exaltação absoluta do amor adiado.
O charme incandescente de absoluta fantasia: peça virtuosa, delirante, subjugante, na qual triunfam os versos. Versos em cascatas abundantes, em uma mistura de certeza e vulnerabilidade. Preciosidade alegre e angústia. Pois Cyrano, deve-se repetir, é um personagem melancólico.
Há cem anos, durante os agitados ensaios dessa peça dedicada ao grande ator Constan Coquelin, Edmond Rostand morria de inquietação, convencido de que caminhava para a arena dos leões.
Sua própria esposa o aconselhou a retirar a história do nariz, tachando-a de ridícula. E essa esposa adorada não era outra senão a poeta Rosemond Gérard, a quem devemos: "Pois sabes que a cada dia te amo mais/ hoje mais que ontem e bem menos que amanhã".
Mas, na noite de 27 de dezembro de 1897, Edmond Rostand colheu os louros no teatro da Porte Saint-Martin: quarenta pedidos de bis, delírio até as duas horas da manhã e a aclamação dos críticos no dia seguinte.
Cinco dias mais tarde, em 1º de janeiro, foi nomeado cavaleiro da Legião de Honra. No Dia de Reis, em 6 de janeiro, o presidente francês Félix Faure foi com toda a família assistir à apresentação.
Coquelin só deixou o papel de Cyrano em 1910, quando morreu. Em 1913, a peça já tinha sido apresentada mil vezes e havia sido adaptada para ópera nos Estados Unidos. Em 1931, os japoneses puderam vê-la no Teatro Imperial de Tóquio.
Impossível citar todos os grandes -e os não tão grandes- que já escalaram essa montanha de 1.400 versos do personagem. De Pierre Fresnay a Belmondo, passando por Pierre Dux e Jean Marais. Sem esquecer Jean Piat, frente a Geneviève Casile, sob a direção de Jacques Charon.
Sem esquecer Daniel Sorano. Nem o robusto Depardieu no cinema. Rappeneau veio após Gance e outros, sete filmes no total.
Cyrano, à época em que o simbolismo e o realismo social disputavam as manchetes, entrou imediatamente na memória coletiva, não somente franco-francesa. E aí permaneceu.
Obra-prima da qual qualquer um é capaz de citar ao menos uma passagem. Sucesso sempre renovável e desafio constantemente original para atores.

Tradução Luiz Antonio Del Tedesco.

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