São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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Mercosul e Tordesilhas

HERALDO MUÑOZ

Um dos maiores obstáculos para o sucesso da integração regional é a herança do Tratado de Tordesilhas. O acordo, assinado entre Portugal e Espanha em 1494, traçou os limites coloniais das duas potências nas Américas.
A linha vertical de Tordesilhas, que deixou para Portugal boa parte do que é hoje o Brasil, dividiu nossa região entre os latino-americanos de origem espanhola e os de origem portuguesa, com línguas, evoluções políticas e Estados-nações diferentes, ainda que com estruturas e problemas econômicos e sociais muito similares.
Tordesilhas condicionou uma geografia, histórias nacionais e conexões físicas na América do Sul que deixaram o mundo hispano-americano e o Brasil de costas um para o outro.
Embora sempre tenham existido contatos entre zonas fronteiriças, a estrutura do comércio e os laços político-diplomáticos nunca priorizaram a integração mútua. Os vínculos econômicos, políticos e culturais das nações sul-americanas desenvolveram-se primeiro verticalmente, saltando os países vizinhos, com as potenciais colônias; mais tarde, com os centros mais dinâmicos do florescente capitalismo.
A política imperial -especialmente no caso da Espanha- de monopolizar o acesso à riqueza descoberta no Novo Mundo agravou a separação e o isolamento entre as dependências coloniais na América do Sul.
À herança colonial desintegradora somou-se, mais tarde, o fato de que o Brasil, com seu enorme mercado interno, não dedicou esforços relevantes ao desenvolvimento do intercâmbio comercial com seus vizinhos.
A globalização econômica e o fim da Guerra Fria mudaram essa situação, fazendo com que a integração virasse um imperativo para enfrentar a concorrência em nível mundial.
Precisamos, agora, vencer a herança ruim de Tordesilhas. A existência do Mercosul já é um grande avanço nesse sentido. O comércio entre os parceiros do bloco passou de US$ 2,5 bilhões em 1991 para US$ 16 bilhões em 1996, e os substantivos investimentos entre Mercosul e Chile estão criando uma forte rede de interdependência.
O Chile está entre os principais investidores estrangeiros na Argentina e investe cada vez mais no Brasil. Isso gera maior conhecimento mútuo, interesse na estabilidade dos países vizinhos e ampliação dos espaços econômicos, sociais e culturais. Mais importante: tradicionais hipóteses de conflito entre Argentina e Brasil foram descartadas. Hoje, vemos inéditos exercícios militares entre os dois países e o Uruguai e entre o Chile e a Argentina.
Precisamos também promover a consolidação de corredores terrestres entre Atlântico e Pacífico, para vencer o isolamento geográfico que nos deixou a linha de Tordesilhas. Nesse sentido se escreve uma interessante história.
Nos últimos anos, Chile e Brasil têm trabalhado sobre o tema dos corredores, com a participação do setor privado. Já houve vários encontros entre governadores, prefeitos e empresários das zonas de fronteira. Novas vias de comunicação e transporte estão se abrindo; o intercâmbio incrementa-se; e o conhecimento mútuo aprofunda-se.
Uma comissão técnica sobre corredores já fez um trabalho de priorização de traçados, análise de financiamento externo de obras e propostas de normas para facilitar o trânsito internacional. Um grupo multilateral foi criado no contexto da comissão, incorporando todos os países vizinhos envolvidos.
A conexão bioceânica não aponta só para uma vinculação mais rápida e eficiente entre o Mercosul e os mercados da Ásia-Pacífico. Busca também a integração das regiões intermediárias, como o Centro-Oeste e o Sul do Brasil, o Norte da Argentina, o Sul do Peru, boa parte da Bolívia, o Centro-Norte do Paraguai e o Norte do Chile.
Quase todas são regiões relativamente distantes de suas capitais nacionais ou de seus centros econômicos mais dinâmicos -mas, conjuntamente, representam um mercado integrado potencial de grande envergadura.
As sucessivas cúpulas ibero-americanas de chefes de Estado e de governo também têm ajudado a superar a síndrome de Tordesilhas, fortalecendo a identidade comum e a integração.
É preciso recuperar nossa história comum, promover o ensino do português nos países hispânicos e do espanhol no Brasil, tornar mais barata a tradução e importação de livros, ampliar o comércio de matérias-primas do mercado editorial, apoiar projetos de co-produção de filmes e vídeos etc.
O Mercosul tem sido definido como um esquema de integração que vai além do âmbito econômico-comercial, tendo importantes conotações políticas, culturais e sociais.
Assim, é preciso dedicar mais esforços para superar a herança de Tordesilhas, unificar nossas histórias nacionais e desenvolver múltiplos programas de intercâmbio, governamental e não-governamental, entre nossos países, fazendo com que a integração seja, crescentemente, uma realidade irreversível.

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