São Paulo, terça-feira, 2 de dezembro de 1997
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Pancadaria

ELIANE CANTANHÊDE

Brasília - Mais do que a quebra da estabilidade, as regras da aposentadoria ou o aumento de impostos, é o projeto do aborto legal que vai incendiar o Congresso nesta semana.
A confusão começa hoje, quando diretores dos sete centros que praticam aborto legal no país têm debate com parlamentares e representantes da comunidade científica, em Brasília.
A votação no plenário da Câmara deverá ser até sexta-feira. Feministas vão gritar de um lado; grupos religiosos, de outro. Tudo pode acontecer, até pancadaria.
O padre Luiz Carlos Lodi da Cruz (que levou vítimas e filhos de estupros ao Congresso) anda despejando livretos na cidade chamando de "matadouros" os sete centros, inclusive o Hospital Materno-Infantil de Brasília.
O diretor desse hospital, Lucas Cardoso Veras Neto, respondeu com xerox de passagens da Bíblia sobre assassinato de primogênitos. "O Deus de vocês já permitia matança de criancinhas 10 mil anos atrás", provocou.
Lodi, 34 anos, é padre, nunca teve namorada (como disse em entrevista publicada ontem nesta Folha) e tem verdadeiro horror às feministas.
Lucas, 51 anos, é médico, assumidamente ateu e pai de cinco filhos. "Criança é o maior barato, mas tem de ser desejada", opina.
São dois extremos de uma discussão que não é simplesmente religiosa e não comporta mais o meio-termo. Quem é contra vai às últimas consequências; quem é a favor, também.
Apesar disso, vale insistir, o projeto que tramita na Câmara não muda praticamente nada nas leis existentes. Apenas regulamenta o aborto em serviços públicos de saúde para dois tipos de gestantes pobres: vítimas de estupro ou que corram risco de vida. As ricas já se viram sozinhas há tempos.
Para Lodi, o aborto em qualquer situação é uma agressão às leis de Deus. Para Lucas, o projeto é uma questão de saúde pública, de justiça social e deve ser ampliado. Para a mulher, é apenas a conquista do direito de seguir suas próprias convicções.
Os verdadeiros matadouros não são os hospitais que socorrem pobres violentadas. São aqueles onde quem morre não é o feto. É também ele.

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