São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997 |
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Verdadeira violência de "Funny Games" está em sua crítica
CECÍLIA SAYAD
Contrariamente ao que pode parecer, o que perturba no filme do austríaco Michael Haneke não é a violência em si. É a curiosidade e, no limite, o prazer que ela desperta. Ou ainda, os momentos que sucedem um ato de violência. A situação é a seguinte: pai, mãe e filho vão para uma casa de férias. Lá chegando, dois jovens, hóspedes de seus vizinhos, aparecem para pedir ovos. E de lá não saem, prometendo que ninguém chegará com vida até o final da noite. Tome-se, primeiramente, a questão da curiosidade. Aqui, trata-se de um dos raros casos em que a tradução brasileira para um título estrangeiro vem contribuir à intenção do diretor. Porque quem sai de casa para ver um filme chamado "Violência Gratuita" sabe muito bem que pode assistir a coisas terríveis. Só que, em "Funny Games", o diretor, em vez de ignorar o fato ou achar que ele não tem nada de mais, apelando para justificativas como a necessidade de catarse etc., chama a atenção do público para isso, colocando-o como cúmplice dos jovens psicopatas. O incômodo começa aí. O psicopata olha para a câmera e dá uma piscadela, provocando uma quebra brechtiana -o público se lembra de que o que está vendo é só um filme. Ao mesmo tempo, essa quebra serve para dizer ao espectador que ele está aceitando e participando daquilo que vê. Segundo fator de provocação: o prazer que a violência desperta nos jovens, que choca mais do que socos e tiros. Mesmo porque isso mal aparece. O filme oferece somente os momentos pré e pós-violência. A execução de um dos membros da família, que se dá na sala, acontece enquanto a câmera mostra um dos psicopatas na cozinha. Quando a cena volta para o outro cômodo, o que é apresentado é um silêncio torturante que se sucede ao crime. Silêncio que se revela muito mais terrível de ser presenciado do que o crime em si. Novamente, Haneke alfineta o espectador. A um só tempo, brinca com o fato de, da violência, que ele sabe que vai presenciar, só lhe serem oferecidos alguns elementos (sobretudo sonoros), dando-lhe liberdade para ele mesmo elaborá-la pela imaginação -colocando-o, mais uma vez, como cúmplice, desta vez ativo, uma vez que cabe ao público montar a cena, que não vê, em sua cabeça. Haneke tem um grande mérito. Não atinge o público no estômago, mas na consciência. Assistir ao filme até o fim não demonstra sangue frio ou estômago forte, e sim capacidade para refletir sobre sua própria relação com a violência. Ou sobre como a violência é tratada no cinema. Aqui, despida da estética que a torna não só tragável, mas comercializável, ela se revela muito mais chocante. Por quê? Novamente, porque o foco do filme é sobre o prazer que ela desperta, do qual Haneke nos faz cúmplices. Identificando o espectador ao objeto criticado -os que têm "atração" pela crueldade-, a provocação de Haneke se faz muito eficaz. Por fim, a verdadeira violência de "Funny Games" está em sua crítica. Vale a pena aguentar. Filme: Funny Games - Violência Gratuita Produção: Áustria, 1997 Direção: Michael Haneke Com: Susanne Lothar, Ulrich Mühe, Frank Giering Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1 e no Espaço Unibanco 1 Texto Anterior: Filme combina informação e poesia Próximo Texto: A América paranóica nas letras de DeLillo Índice |
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