São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
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A América paranóica nas letras de DeLillo

DAVID REMNICK
DA "THE NEW YORKER"

Na primavera de 1988, os editores do "The Post", de Nova York, enviaram dois fotógrafos a New Hampshire com ordens de encontrar J.D. Salinger e fotografá-lo.
Se a frase "tirar sua foto" ainda conservava qualquer sentido de violência, ou, pelo menos, de violação, se ainda continha a idéia subjacente de determinados povos que acreditam correr o risco de perderem suas almas se forem fotografados, então era ali que esse sentido se aplicava.
O motivo pelo qual o "Post" perseguia sua presa não é mistério nenhum. Por razões desconhecidas (e presume-se que não sejam felizes), Salinger parou de publicar muito tempo atrás. Seu último conto, "Hapworth 16, 1924", apareceu na "The New Yorker" em 1965 -desde então ele vive como recluso. Sua retirada de cena se tornou, para jornalistas, uma história que exige esclarecimento, intervenção e divulgação.
Inevitavelmente, o "Post" captou sua presa. Os jornalistas tiraram a foto de Salinger. O jornal publicou em sua primeira página a foto de um homem magro de 69 anos, recuando como se previsse uma catástrofe. Naquele instante, a expressão dos olhos de Salinger traía um terror tão grande que é de espantar que ele tenha sobrevivido. "O APANHADOR FOI APANHADO!", gritou a manchete, triunfante.
No dia em que a foto de Salinger saiu no "Post", outro romancista respeitado, Don DeLillo, começou a pensar sobre o poder místico e inevitável da imagem na era da mídia e também sobre suas próprias tentativas menos enérgicas de manter distância da máquina da mídia. Desde o início ele fugira da exposição, além daquela imposta por sua própria obra.
Em 1971, quando publicou seu primeiro romance, "Americana", pedira que a nota sobre o autor, na capa externa do livro, dissesse apenas: "Don DeLillo vive e trabalha em Nova York". Nenhuma intenção de ofender, mas ele pretendia manter sua privacidade.
Depois de viver no Bronx e em Manhattan por muitos anos, DeLillo e sua mulher, Barbara Bennett, foram morar a meia hora de trem da cidade, no condado de Westchester. Eles vivem num lugar verde e tranquilo, repleto de advogados, médicos, editores e banqueiros. Ambos trabalham em casa: DeLillo como escritor, em seu escritório no primeiro andar, e Bennett como paisagista (antes disso foi executiva do Citibank).
DeLillo não leciona, raramente faz leituras de sua obra e concede apenas um mínimo de entrevistas. Quando seus amigos lhe perguntavam qual era sua filosofia, Don DeLillo dizia que vivia segundo as palavras de Stephen Dedalus: "Silêncio, exílio e astúcia -e assim por diante".
Mas o que DeLillo aprendeu com a foto no "Post" e muito provavelmente com sua amizade com Thomas Pynchon é que o preço da reclusão total é ainda mais alto do que o preço da prostituição para a mídia. Pouco depois de ver a foto de Salinger, DeLillo começou a escrever "Mao 2", cujo personagem central é um romancista chamado Bill Gray.
Em determinado momento, Gray diz: "Quando um escritor não mostra o rosto, se transforma no sintoma local da célebre relutância de Deus em aparecer... As pessoas podem ficar intrigadas com essa figura, mas também sentem raiva dela, zombam dela, querem sujá-la e assistir a seu rosto distorcendo-se em choque e medo quando o fotógrafo escondido sai repentinamente de trás das árvores".
Houve uma época em que as pessoas que aspiravam fazer parte de algo chamado "o público leitor americano" se sentiam na obrigação de comprar, e até mesmo de ler, a obra de ficção do momento. Nós nos sentíamos culpados se deixássemos de ler "A Perfect Day for Bananafish" ou "The Group".
Hoje em dia, provavelmente sentimos mais ansiedade por ainda não termos visto "Tempos de Violência" um mês depois de sua estréia do que por nunca termos lido o último livro de Saul Bellow.
Será interessante ver o que acontece com o novo romance de DeLillo, "Underworld". DeLillo tem 60 anos e este, seu 11º romance, é seu romance mais longo, mais ambicioso e mais complexo, além de ser o melhor. Tem mais de 800 páginas e se propõe a retratar a psique americana durante sua ascendência na Guerra Fria, começado com o "home run" (jogada perfeita no beisebol) de Bobby Thomson, para conquistar a flâmula da Liga Nacional em 1951 para os New York Giants, e terminando com uma explosão subterrânea no Cazaquistão, após o colapso da URSS.
O personagem central do livro é um homem chamado Nick Shay que, quando adolescente, matou um garçom no Bronx a tiros. O romance segue a trajetória de Shay e dos Estados Unidos a partir do "home run" de Thomson, aquele momento singular de alegria que tomou conta da cidade, até sua maturidade desiludida. Shay vira adulto e se torna um executivo especializado na administração de detritos. Assim como "Libra", de 1988, foi uma espécie de biografia fictícia de Lee Harvey Oswald, "Underworld" também contém uma plêiade de personagens públicos imaginados, incluindo J. Edgar Hoover, Frank Sinatra, Jackie Gleason e Lenny Bruce, além de artefatos da Guerra Fria como um filme "há muito tempo perdido" de Sergei Eisenstein chamado "Unterwelt", as pichações e os grafites de pintores guerrilheiros no metrô, um documentário sobre os Rolling Stones, fotos tiradas por satélite e um monólogo do locutor dos Giants, Russ Hodges.
No processo de rotulação que faz as vezes de crítica popular, DeLillo já foi chamado de "o xamã chefe da paranóica escola de ficção americana" -não sem dose de razão.
Mesmo DeLillo admite que o fio constante que permeia seus livros diz respeito ao "viver em tempos perigosos", a tramas e conspirações, a homens com problemas que habitam quartos pequenos. Mas, apesar dos espaços pequenos e da premonição suada presentes em seus livros, incluindo "Underworld", o que falta nas críticas feitas a DeLillo é o humor, a maneira como a língua subjaz à escuridão das paisagens -e até a redime. "Underworld" é a comédia negra da Guerra Fria; está repleto de sentenças que captam um momento na história americana.
Embora DeLillo nunca tenha escrito um best seller, a Scribner pagou quase US$ 1 milhão por "Underworld", e Scott Rudin, produtor de "As Patricinhas de Beverly Hills", comprou os direitos do livro para o cinema.
Com um misto de resignação e achar graça, DeLillo concordou em fazer sua parte pública, mas está tentando manter as coisas dentro de limites razoáveis. Quando falamos ao telefone para combinar um encontro em sua casa, DeLillo disse: "Peço que você não especifique onde moro. Pode dizer que é em Westchester". Assim, nos encontramos numa manhã de verão, no horário combinado, na estação de trem combinada, que, como o combinado, ficará sem nome.
Encontrar DeLillo pela primeira vez é como conhecer alguém que já se despiu de todos os traços de ego de autor ou de afetação pessoal. Sua voz é seca e revela um senso de humor discreto, com um leve sotaque do Bronx; ele usa óculos enormes e muito grossos; suas roupas são no estilo jeans comprados por encomenda postal e camisas de brim. Sua vida é igualmente dionisíaca: passa quatro horas por manhã escrevendo, depois corre algumas voltas numa pista local ao meio-dia ("árvores, pássaros, garoa"), depois escreve mais, até o fim da tarde. Às vezes vai ao cinema. Às vezes aluga um filme. DeLillo disse certa vez que "o escritor toma medidas sérias para garantir sua solidão e depois encontra incontáveis maneiras de desperdiçá-la". Mas ele já aprendeu a não desperdiçá-la muito. Quando começou a escrever, em meados dos anos 60, trabalhava esporadicamente. Foi só com o passar do tempo que desenvolveu sua concentração e seu rigor de atleta, o senso de responsabilidade que lhe permitiu lançar novos livros de maneira tão constante, desde "Americana".
"Demorei a levar minha ficção a sério", disse ele quando nos ajeitamos em sua segunda sala, decorada com algumas antiguidades, alguns livros, alguns CDs e algumas flores. "Eu não tinha a ambição necessária, o senso de disciplina. Não fazia idéia do que se exige de um escritor que leva seu trabalho a sério e levei muito tempo para desenvolver tudo isso. Não me ocorreu, na época, que o trabalho do dia-a-dia exige muito mais de nós. Você se torna um escritor melhor pelo fato de envelhecer, de viver mais tempo."
DeLillo não mapeou a arquitetura de "Underworld" e depois começou a escrever. O processo foi muito mais intuitivo, misterioso, hesitante. Nunca houve um esboço prévio. Tudo começou com um prólogo de 25 mil palavras, que abre com um adolescente chamado Cotter Martin entrando de fininho no Polo Grounds e depois, como uma câmera que vai ampliando seu foco, vai abrangendo a multidão. A abertura, que apareceu pela primeira vez na "Harper's", numa novela chamada "Pafko at the Wall", é uma das peças mais extraordinárias da ficção americana contemporânea. DeLillo consegue captar a interação entre os figurões de Hollywood no camarote particular de Leo Durocher (Jacky Gleason vomitando em cima das meias de Frank Sinatra), o medo e o prazer de Cotter, em seu lugar roubado, os movimentos animais da multidão, a ação em campo, as reações de êxtase da população da cidade e, mais longe, até J. Edgar Hoover furtivamente examinando uma pequena reprodução de um quadro de Brueghel. Hoover, sentado em seu camarote, sabe que enquanto essa partida de beisebol está sendo jogada, a União Soviética está secretamente testando uma arma nuclear no Cazaquistão, e pensa: "Qual é a história secreta que estão escrevendo?" O foco de DeLillo, sua câmera, parece percorrer o estádio de cena em cena, rosto em rosto, mente em mente, absorvendo tudo ao mesmo tempo como se fosse uma coisa só.
Enquanto os Giants estavam realmente enfrentando os Dodgers pela flâmula de 1951, DeLillo estava no consultório de um dentista na avenida Crotona, no Bronx. Naturalmente, era torcedor dos Yankees, de modo que estava esperando principalmente para ver quem seria a próxima vítima da Liga Nacional. O "home run" de Thomson não foi para ele tudo aquilo que foi para os torcedores dos Giants. Mas, 40 anos mais tarde, quando leu num jornal uma descrição comemorativa da partida, começou a pensar no evento, em como parecia ser impossível de ser repetido, na alegria coletiva que suscitou, casada, como o foi na primeira página do "Times" em 1951, com a notícia da explosão nuclear no Cazaquistão. "Parecia que alguém estava querendo me dizer alguma coisa", me explicou DeLillo.
DeLillo se interessa há muito tempo pelo trecho dos diários de John Cheever em que este escreveu, depois de assistir a uma partida no Shea Stadium: "A tarefa do escritor americano não é descrever os temores de uma mulher flagrada em adultério, enquanto olha a chuva pela janela, mas descrever 400 pessoas sob os holofotes, tentando pegar uma bola batida numa falta... ou o trovejar de 10 mil pessoas se dirigindo à saída. O senso de julgamentos morais encarnados numa imensidão migratória".
Depois do prólogo, "Underworld" corta para 1992 e começa a retroceder através dos anos da Guerra Fria, de modo que o dia daquele jogo, 3 de outubro de 1951, e o dia em que Nick Shay atira no garçom, 4 de outubro de 1951, são separados por 40 anos de narrativa. O fio mecânico que viaja pela narrativa, à medida que ela avança e recua no tempo, é o beisebol.

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