São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
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'Minha obra: cultura do mundo que me cerca'

DAVID REMNICK

"'Underworld' é uma sátira sombriamente engraçada à linguagem, aos modos e às obsessões do pós-guerra"
"O que acontece nesse ínterim é que eu vagueio um pouco à toa. Me sinto um pouco burro, porque minha mente está distraída'

continuação da pág. 8

Muitos dos temas já conhecidos de DeLillo estão presentes em "Underworld": o crescente poder da imagem e da mídia no mundo moderno, a incerteza da vida americana após o assassinato de Kennedy, o senso de perigo nacional, homens e mulheres que vivem fora dos limites da vida e da linguagem comuns. Aqui e ali há até um aroma daquela tão singular marca registrada de DeLillo: a paranóia.
Mais frequentemente, porém, "Underworld" é uma sátira sombriamente engraçada à linguagem, aos modos e às obsessões do pós-guerra.
Conversávamos sobre isso enquanto caminhávamos pelo Bronx. "Vou lhe mostrar a casa", disse ele, dirigindo-se à esquina da rua 182 com Adams Place. A casa é estreita, de três andares, com telhas de zinco remendadas. DeLillo cresceu ali com seus pais, imigrantes italianos, sua irmã, um tio e tia e seus três filhos.
Estávamos suando sob o sol forte, mas não havia quase nada aberto. Finalmente DeLillo encontrou um café e confeitaria que tinha ar condicionado funcionando. Nos sentamos e eu lhe perguntei porque esperara até encher uma prateleira substancial de livros antes de voltar-se ao Bronx em sua ficção. Em "Underworld", Nick Shay cresce num prédio situado perto da velha casa de DeLillo.
"Tive que esperar 30 anos para poder fazer justiça ao Bronx", disse DeLillo. "Eu precisava dessa distância. E precisava escrever sobre o bairro num contexto muito mais amplo. Eu não podia escrever um livro sobre um pano de fundo e um lugar, sem situá-lo num contexto mais amplo. Mergulhei no Bronx nos meus primeiros contos, mas eles não foram muito bons. Eu nem gostaria de lê-los outra vez. Eram uma espécie de história literária proletária, sobre trabalhadores sob repressão. Lembro que um deles era sobre um homem que tinha sido despejado de sua casa e estava sentado na calçada, cercado por seus pertences."
DeLillo estudou no Colégio Cardinal Hayes ("onde eu ficava dormindo") e na Universidade Fordham ("onde me formei em algo chamado 'artes da comunicação"'). Seu pai era escrivão na companhia de seguros Metropolitan Life, em Manhattan. "Sabe aquele livro do Graham Greene chamado 'England Made Me', Nova York me fez", disse DeLillo.
"Há uma sensibilidade, um senso de humor, uma espécie de abordagem sombria às coisas que é parte Nova York e parte, talvez, o fato de ter crescido católico, e que, no que me diz respeito, molda meu trabalho muito mais do que qualquer coisa que eu já tenha lido. É verdade que tive algumas experiências de leitura maravilhosas, especialmente 'Ulisses'. Eu o li pela primeira vez quando era bem jovem, e depois outra vez aos 25. E isso foi importante. Me senti muito atraído pela beleza da linguagem, especialmente nos primeiros três ou quatro capítulos. Eu me recordo de ler esse livro numa parte do meu quarto que costumava ficar ensolarada. Mas eu não lia quando era criança, e ninguém lia nada para nós. Isso não fazia parte de nossa tradição. Como todo nova-iorquino, DeLillo fala dos bairros da cidade em termos limitados. Quando passamos pela avenida Bathgate, apontou para a placa da rua e disse: "Costumo ficar longe dessa rua. É a área do Doctorow".
Ainda há muitos italianos na espinha dorsal da avenida Arthur, mas também há negros, hispânicos, albaneses, bósnios. Andar por estas ruas ajudou DeLillo a relembrar as ruas e o cimento básico do lugar, mas também a psique da época -a maneira como as pessoas sabiam o que sabiam, como tão raramente viviam no mundo mais amplo, exceto quando iam a Manhattan pelo elevado da Terceira Avenida e enxergavam vislumbres passageiros de outras vidas nas janelas abertas dos apartamentos. E, como "Underworld" é sobre o mundo mais amplo, sobre a Guerra Fria, suas viagens ao Bronx o ajudaram a recordar como ele e seus vizinhos haviam vivido em tempos ameaçadores.
"Naquela época, o jeito como as pessoas absorviam as notícias era diferente", disse ele, com o gorgolejar da máquina de café expresso ao fundo. "Era preciso ir ao cinema para realmente ver alguma coisa. Havia um desenho animado e depois um curta sobre a explosão da bomba de hidrogênio. Era parte do entretenimento."
Em 1959, depois de terminar a faculdade, DeLillo se mudou para um apartamento minúsculo em Murray Hill, o tipo de lugar onde a geladeira fica no banheiro.
De início, trabalhou em regime de tempo integral como redator de propaganda na Ogilvy, Benson & Mather. Seus amigos eram os outros redatores, sujeitos engraçados e sofisticados "que eram como uma combinação de Jerry Lewis, Lenny Bruce e Noel Coward".
Juntos, iam ao Museu de Arte Moderna e ao Village Vanguard, assistiam aos filmes europeus da época. Enquanto isso DeLillo começava a escrever "Americana".
Foi um início hesitante, mas depois de alguns anos, quando DeLillo começou a dominar seu livro e se convenceu de que era um escritor de verdade, ele abandonou a Ogilvy, Benson & Mather.
Para ganhar um pouco de dinheiro, fazia trabalhos de free-lance redigindo catálogos de móveis, diálogos de quadrinhos, roteiros de comerciais de televisão.
"Americana" foi lançado em 1971 e foi julgado promissor, e, em 1975, DeLillo se casou com Barbara Bennett. Eles não têm filhos.
"Minha vida tem sido marcada pela sorte", disse DeLillo. "Não tive as muitas distrações que atrapalham o trabalho de outros escritores. Para começo de conversa, ganho o suficiente para sobreviver. Aprendi a viver com muito pouco. E as complicações de família não têm sido uma fonte de dificuldades para mim, como o são para quase todo mundo."
Tanto em seus primeiros livros quanto nos triunfais "Os Nomes", "Ruído Branco", "Libra", "Mao II" e "Underworld" irradiam uma sensibilidade moldada nos anos 60 e 70.
Mas, diferentemente de alguns de seus contemporâneos e amigos, DeLillo tem se mantido, de modo geral, à margem da política. "Tomei parte de várias manifestações contra a guerra, mas apenas nas fileiras de trás", disse ele. "Eu me interessava muito pelo rock. Ao mesmo tempo, preciso admitir que não comprei um único disco. Eu o ouvia no rádio. Deixei a cultura do rock jorrar sobre mim. Eu usava maconha, não frequentemente mas de maneira mais ou menos regular. Achei os anos 60 extremamente interessantes, e, ao mesmo tempo em que tudo isso acontecia -o enorme tumulto social-, eu também sentia que havia no ar um tédio curioso, um desinteresse, que pode, na realidade, fazer parte do meu primeiro livro."
Em um dia deste verão, enquanto almoçávamos no restaurante do Museu de Arte Moderna, perguntei a ele se essas visitas ao museu influenciaram sua obra; se, na verdade, todas as experiências instigantes de sua juventude -Joyce, os filmes europeus dos anos 60, o bebop e o rock- estiveram presentes em seus livros.
"É uma pergunta muito difícil de responder", disse DeLillo. "Mas a influência é sempre metafísica. Acho que eu não conseguiria identificar nenhum tipo de conexão direta. Acho que a ficção vem de tudo que você já fez, já disse, já sonhou, já imaginou. Vem de tudo que você leu e do que você não leu. Vem de todas as coisas que estão no ar. Em algum momento você começa a escrever sentenças e parágrafos que não soam como os de outros escritores. E, para mim, o 'xis' da questão é a linguagem, e a linguagem que um escritor acaba desenvolvendo. Se você está falando de Hemingway, a sentença Hemingway é o que faz Hemingway. Não são as touradas, os safáris, as guerras -é a sentença clara, direta, vigorosa. É o conectivo simples -a palavra "e"- que liga os segmentos de uma sentença Hemingway longa. A palavra "e" é mais importante para a obra de Hemingway do que Paris ou a África. Acho que minha obra vem da cultura do mundo que me cerca. Acho que é daí que vem.
Perguntei a DeLillo se ele se reconhece nas críticas acadêmicas ou resenhas jornalísticas de sua obra.
"Não muito", disse ele. "O que quase nunca é dito é aquilo que acabamos de discutir, sobre a linguagem em que um livro é formulado. E isso por uma boa razão: é difícil falar disso. Assim, ouvimos análises amplas das questões sociais presentes em nossa obra, por exemplo, mas raramente qualquer coisa sobre como o escritor chega até lá."
DeLillo não faz idéia de como "Underworld" será absorvido na cultura, se é que o será. Ele parece não se preocupar com isso. Na verdade, não acha que o status cada vez mais marginal do romancista sério seja necessariamente algo terrível. Pelo fato de ser marginal ele pode acabar sendo mais significativo, mais respeitado, mais aguçado em suas observações.
Em "Libra", em "Mao II" e, agora, em "Underworld", DeLillo inclui em sua obra, cada vez mais, o mundo do poder e da celebridade -o mundo da história contemporânea. É provável que continue nessa direção.
"Acho que os acontecimentos públicos vêm sendo mais e mais noticiados nas últimas décadas", ele me disse. "É o poder da mídia, o poder da televisão. Mas também, acho, é algo nas pessoas que talvez tenha mudado. As pessoas parecem precisar de notícias, notícias de qualquer tipo -más, sensacionalistas, avassaladoras. Parece que é a notícia a narrativa de nossa época. Ela quase assumiu o lugar do romance, quase substituiu o discurso entre as pessoas. Tomou o lugar das famílias. Tomou o lugar de uma maneira mais lenta, mais cuidadosamente montada de se comunicar, de uma comunicação mais pessoal. Nos anos 50 as notícias eram como que uma parte sinuosa do dia. Elas fluíam para dentro e para fora de uma maneira comum, não notável. Hoje em dia as notícias exercem impacto, em grande medida devido aos noticiários da televisão. Depois do terremoto de San Francisco, a televisão mostrou inúmeras vezes a cena de uma casa ardendo em chamas. O televisor virou uma espécie de instrumento do apocalipse. Isso acontece repetidas vezes naqueles videoteipes infindáveis que aparecem, de um assalto a banco, um tiroteio ou um espancamento. Eles repetem a cena, e é como se, de alguma maneira, estivessem acelerando o tempo. Acho que tudo isso induziu nas pessoas um sentimento apocalíptico que não tem nada a ver com o fim do milênio. E isso nos torna consumidores de determinado tipo. Consumimos esses atos de violência. É como comprar produtos que, na verdade, são imagens, e são produzidas de um modo típico do mercado de massa. Mas também é real, é a vida real. É como se isso fosse nossa derradeira vivência da natureza: ver um sujeito com uma arma na mão totalmente separado da violência coreografada do cinema. De uma maneira estranha, é tudo que nos resta da natureza. Mas está tudo acontecendo na nossa TV."
A caminho da estação, onde me deixaria para que eu pegasse o trem de volta à cidade, DeLillo disse: "O que acontece nesse ínterim é que eu vagueio, me sinto um pouco à-toa. Me sinto um pouco burro, porque minha mente está distraída. Ela não está treinada para concentrar-se diariamente em alguma coisa, então me sinto um pouco estúpido. O tempo passa de maneira completamente diferente. Não posso definir o que fiz num dia, num dia dado. Ao final de um dia, não sei o que fiz."

Tradução Clara Allain

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