São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Poder e dinheiro

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Após mais de um mês de continuadas turbulências nas finanças internacionais, a crise asiática atinge o Japão -cuja "bolha" de especulação bursátil e imobiliária estourou há seis anos atrás- e a Coréia, que terá de submeter-se ao nefasto receituário do FMI para obter os US$ 55 bilhões de que necessita para estabilizar suas contas externas.
Estranhamente, porém, à medida que se vão definindo a extensão e as conseqüências da crise -entre as quais o agravamento da fragilidade estrutural a que foi submetido o balanço de pagamentos brasileiro- não parece haver nenhum esforço mais conseqüente para descrever, de maneira mais precisa e sistemática, o quadro geral da economia internacional no qual se inserem os recentes fenômenos.
O debate público e político no mais das vezes contém referências difusas à "globalização", tratada como um processo de caráter quase natural e vagamente associada à utilização de tecnologias de telemática. Não há dúvida de que o termo foi cunhado no campo próprio das ideologias, transformando-se, nesta última década, num lugar-comum de enorme conotação positiva, até a recente crise asiática, quando passou a ser tida como força incontrolável que atinge todos os "mercados" ou países indiscriminadamente.
É provável inclusive que essa palavra passe à história dos modismos sem jamais adquirir um verdadeiro estatuto teórico, mantendo-se como um conceito inacabado. Mas também não há dúvida de que, apesar de tudo isso, poucas palavras possuem tamanha força política neste final de século 20, o que já seria razão suficiente para submetê-la a um exame mais rigoroso e crítico.
Devemos lembrar, com Hobsbawm (na sua "Era dos Impérios"), que na segunda metade do século 19 a palavra "imperialismo" também tinha uma conotação extremamente vaga e positiva quando foi introduzida no cenário político europeu pela linguagem jornalística. E foi assim que ela também se transformou em lugar-comum, vulgarizando-se de tal maneira durante a década de 1890 que, por volta de 1900, quando os intelectuais começaram a escrever livros sobre o imperialismo, ele já estava "na boca de todo mundo". Por outro lado, o fato é que, apesar de a palavra "imperialismo" haver pertencido, no começo, ao jargão político e jornalístico, ela acabou se transformando, depois da obra clássica de John Hobson, numa peça teórica essencial da economia política do século 20. E, se nos primeiros tempos evocava um estado de coisas desejável, acabou adquirindo uma conotação política cada vez mais negativa com o passar do tempo.
Uma crítica séria e consistente do conceito de "globalização", tal como introduzido pelo jargão ideológico liberal deste final de milênio, talvez possa contribuir para uma melhor compreensão das transformações da economia capitalista ocorridas a partir da crise dos anos 70, e dos desafios enfrentados pela sociedade política mundial na entrada do século 21. Dentro desse espírito é que o prof. J. L. Fiori e eu nos propusemos a organizar uma coletânea de ensaios intitulada "Poder e Dinheiro -Uma Economia Política da Globalização", lançada recentemente pela Editora Vozes.
Esses ensaios têm em comum a preocupação com os fenômenos a que se refere, genericamente, a palavra "globalização", e são todos parte de um mesmo debate deflagrado a partir da releitura de um texto de minha autoria, escrito em 1985, sobre "A Retomada da Hegemonia Norte-Americana", que abre a coletânea. Àquela época era comum escrever-se sobre o "declínio" dos EUA e o surgimento de uma nova ordem "policêntrica", e o artigo procurava demonstrar, na contramão do consenso então vigente, que os movimentos de desregulação e financeirização em curso na economia internacional não eram fruto de um desenvolvimento espontâneo e autônomo das forças de mercado, fazendo parte, pelo contrário, de um esforço estratégico bem-sucedido de restauração da hegemonia mundial dos EUA, posta em xeque durante os anos 70.
A releitura coletiva deste texto, feita em 1996, serviu de ponto de partida para um seminário de discussão das bases teóricas e metodológicas de uma economia política crítica da nova ordem econômica e política mundial de que se puderam retirar pelo menos três conclusões importantes.
A primeira é de que a dinâmica capitalista fica completamente incompreensível se não levarmos em conta o movimento simultâneo de suas determinações econômicas e políticas. Ainda mais quando o objeto da análise são suas transformações em plano mundial envolvendo, desde suas origens, uma "memorável aliança" e uma relação complexa, mas indissociável, entre "os Estados em ascensão e as forças capitalistas", na célebre formulação de Max Weber.
Em segundo lugar, firmou-se a convicção de que a dimensão essencial e inovadora dessa nova etapa da internacionalização capitalista se concentra no campo financeiro, no qual se desfizeram as fronteiras entre as moedas e os capitais, permitindo uma verdadeira universalização do capital especulativo e a entronização definitiva do dólar como moeda contábil e padrão financeiro obrigatório da economia internacional.
Finalmente, concluiu-se que o movimento de reorganização econômica e política do capitalismo, que tem nos EUA o seu pólo central, está redefinindo a hierarquia de poderes políticos e econômicos em bases regionais e assimétricas. E que, por isso, não há possibilidade de uma explicação única, nem tampouco de uma só estratégia diante das conseqüências -não inclusivas, nem homogeneizadoras- das políticas de globalização financeira.
Atualmente, o reconhecimento da posição polar ocupada pelos EUA, que detêm a última palavra sobre a utilização das armas e do dinheiro -as variáveis centrais de exercício do poder no plano internacional-, se generalizou e não está mais restrito a alguns poucos autores inconformistas. A tal ponto que o próprio primeiro-ministro francês sente-se à vontade para incorporar o que chamou de "pressão hegemônica" dos americanos em um discurso oficial, enquanto a conservadora revista "The Economist" (que como regra empenha-se em achar sempre novas e intrincadas maneiras de reduzir quase tudo ao espontaneísmo dos mercados) recentemente referiu-se à "dolarização da economia global" afirmando categoricamente que "em um mundo onde a predominância da economia americana não tem rivais -e possivelmente excede até mesmo a posição que detinha nos anos 50- nenhum país terá como conduzir uma política monetária independente do Federal Reserve Bank" (Jim Rohwer. The Dollar Rules, 24 de novembro de 1997).
Até mesmo em função do consenso que se vem formando entre as elites conservadoras, não podemos mais prescindir de uma crítica qualificada e minuciosa dos parâmetros políticos e econômicos pelos quais se define o novo quadro de globalização financeira.
Somente munidos dos resultados de uma investigação meticulosa e informada podemos não apenas descartar as visões apologéticas ou demonológicas das conseqüências da globalização, mas também dar substância a uma militância crítica contra as políticas neoliberais de abertura comercial e financeira indiscriminada e de desmonte do Estado a pretexto de uma suposta "inserção" no mundo globalizado.

www.abordo.com.br/mctavares
e-mail: mctavares@cdsid.com.br

Texto Anterior: Projeto desgastado
Próximo Texto: Carro e eletroeletrônico devem cortar mais
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.