São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
As diversões imperiais
GORE VIDAL O mundo está em risco, enquanto os governantes continuam a servir àqueles que os elegem: Boeing, General Electric, MickeyContinuação da pág 5-6 Ao filiar-se à Otan, o novo sócio felizardo desse clube é obrigado a comprar armamentos caros de empresas como a Lockheed Martin, que recentemente se fundiu com a Northrop Grumman. Como os novos sócios têm economias precárias -e os velhos não estão exatamente passando por uma fase boa-, o contribuinte americano, aquela galinha desanimada que bota poucos ovos, terá que emprestar cada vez mais dinheiro para pagar a conta, que, segundo o Escritório Orçamentário do Congresso, deverá chegar a US$ 125 bilhões num prazo de 15 anos, sendo que os Estados Unidos arcarão com 19 desses bilhões. Ieltsin enxerga tudo isso, corretamente, como iniciativa contrária à Rússia, sem falar na custosa renovação da Guerra Fria, enquanto nosso oráculo de Delfos nacional, o mandarim George Kennan, já afirmou que uma expansão desse tipo "é capaz de inflamar as tendências nacionalistas antiocidentais e militaristas na opinião pública russa". A proteção do mundo livre Onde antes nos diziam que era melhor estarmos duros do que mortos, agora vão nos dizer que é melhor estarmos duros do que virarmos -o que mesmo?- escravos dos Cavaleiros de Malta? Enquanto isso, centros de estudos conservadores (cujos salários são pagos, direta ou indiretamente, por conglomerados interessados em sua produção) divulgam opiniões sobre a necessidade de se assegurar a proteção do Mundo Livre contra os inimigos, e a Lockheed Martin faz lobby junto a senadores individuais, tendo gasto (oficialmente) US$ 2,3 milhões com candidatos presidenciais e parlamentares na eleição de 1996. Quem estiver interessado em compreender até que ponto a filiação à Otan será financeiramente desastrosa para os novos membros deve ler o relatório especial "Nato Expansion: Time to Reconsider", escrito pelo Conselho Britânico-Americano de Informações de Segurança e o Centro Europeu de Segurança e Desarmamento. Publicado conjuntamente em 25 de novembro de 1996, seus autores vêem a remilitarização da região situada entre Berlim e Moscou como geopoliticamente lunática e economicamente desastrosa. A Hungria visa a aumentar seus gastos militares em 22% este ano. Os tchecos e poloneses pretendem dobrar seus gastos com defesa. O mundo está novamente em risco, enquanto nossos governantes supostamente bipartidários continuam a servir fielmente àqueles que realmente os elegem: Lockheed Martin Northrop Grumman, Boeing, McDonnell Douglas, General Electric, camundongo Mickey e assim por diante. Enquanto isso, no momento em que escrevo, os EUA estão secretamente construindo uma nova geração de armas nucleares como o míssil W-88 Trident. Custo: US$ 4 bilhões ao ano. Chega um momento em que o império deixa de exercer energia e se torna simbólico -ou existencial, como dizíamos nos anos 40. As atuais discussões em torno da Otan demonstram o dilema que é um império simbólico quando lhe falta a disposição, quanto menos os recursos, para impor sua hegemonia sobre os Estados antes clientes. A entropia acaba nos alcançando a todos. A mansão das diversões desmorona. O parque de diversões vira um estacionamento. "Então acordei, e eis que tudo não passara de um sonho." É "The Pilgrim's Progress" outra vez. Mais ainda não inteiramente. A afirmação de que os generais estão sempre prontos a travar a última guerra constitui um truísmo. A retórica anacrônica vista em Madri, se chegar a se traduzir em ações concretas, com certeza nos levará à próxima -derradeira?- grande guerra, mesmo que seja apenas porque, nas palavras de Francis Bacon, "no momento em que um grande Estado e império estremece e se rompe, é certo que haverá guerras". Felizmente, na ausência de dinheiro e de vontade comum, é provável que não aconteça nada de muito grande. Enquanto isso, existe um mundo novo e melhor já pronto para nascer. A unidade econômica ótima no mundo é hoje a cidade-Estado. Graças à tecnologia, todos sabem ou podem saber algo sobre todas as outras pessoas no planeta. A mensagem que hoje é transmitida incessantemente pela Internet é a irrelevância, para não dizer o perigo puro e simples, da nação-estado tradicional, quanto mais do império. Apesar do tumulto envolvendo suas moedas, o Sudeste asiático lidera esse caminho, enquanto os senhores de guerra em Pequim não apenas estão tolerando a existência de dinâmicas semi-autonomias industriais como Xangai, mas podem até ter um paradigma vigente em Hong Kong. Tiro de misericórdia Não gostamos da maneira como Cingapura é administrada (o que não chega a ser de nossa conta), mas ela é, relativamente falando, um sucesso comercial maior do que os Estados Unidos, que, uma vez que se dê o tiro de misericórdia no império, pode muito bem prosperar em unidades menores, seguindo o modelo dos cantões suíços: regiões católicas de língua espanhola, regiões asiáticas confucianas, regiões unidas e consensualmente mistas e, aqui e ali, cidades-estados, como Nova York-Boston e o Vale do Silício. No próximo século, excluindo acidentes possíveis, o mercado comum na Europa vai evoluir para transformar-se não tanto numa união de antigos Estados manchados de sangue quanto num mosaico de regiões e cidades-estados homogêneos como, por exemplo, Milão, cada um dos quais ligado, em termos comerciais, com um centro de informações situado em Bruxelas, cujo trabalho será o de orquestrar as finanças e o comércio e policiar os cartéis. É preciso permitir que bascos, bretões, valões e escoceses que quiserem livrar-se das onerosas nações-estados sigam seu próprio caminho, livres para buscar e até mesmo -por que não?- encontrar a felicidade, que -ou pelo menos é isso que nós, americanos, sempre fizemos de conta acreditar- constitui a meta dos esforços humanos. Assim, nesse tom americano previsivelmente solene, retornemos, ó "agitadores" e "fazedores" do mês, à "selva deste mundo", relembrando o juramento hipocrático, que exorta os médicos a "acima de tudo, não fazerem nenhum mal". Hipócrates também escreveu que "a vida é curta, mas a arte é longa, a oportunidade, passageira, o experimento, perigoso, o julgamento, difícil". Tradução de Clara Allain. Texto Anterior: As diversões imperiais Próximo Texto: O século das guerras Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |