São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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2097, mais um Natal glacial em Paris

MATTHIEU ÉCOIFFIER
DO "LIBÉRATION"

Paris, 7 de dezembro de 2097, 15h: Temperatura ambiente: -30°C. Uma nevasca ártica recobre de gelo os pés da torre Eiffel. Trezentos metros acima, nuvens precursoras de chuvas ácidas se agarram às antenas. De sua cabine, no terceiro andar da torre, o jovem meteorologista Paul envia pela Internet as medições da temperatura na cidade. Destino dos números: o centro de mudanças climáticas da ONU, em Genebra.
Uma onda de frio assola a Europa Ocidental há dois anos. "É o aquecimento global", ironiza Paul. A corrente do Golfo, que antes subia até a Dinamarca, hoje pára ao chegar a Gibraltar. Suas águas quentes na superfície oceânica já não aquecem a França.
Diante da tela de seus óculos cibernéticos, Paul resmunga: "Frio de rachar em Roma. Dublin coberta de gelo como se fosse Spitzberg, na Groenlândia. Nós, em Paris, estamos a meio caminho entre as duas. E estamos congelando".
A temperatura média anual é -5°C, mas as curvas de temperatura variam cada vez mais de um dia para o outro. "Em todo caso, é melhor passar frio do que viver com os pés na água", diz Paul, pensando em sua mulher, Sari.
Lá embaixo, filas de carros movidos a hidrogênio formam um engarrafamento silencioso ao longo do rio Sena congelado. Daqui a pouco será Natal, e Sari não terá retornado de sua missão em Bangladesh.
Paul não está mais prestando atenção ao programa transmitido pela rádio Meteorológica, chamado "Cem Anos Depois de Kyoto -Por Que Não Fizemos Nada?" Na época, os cientistas falavam da "influência do homem sobre o clima mundial" e em "surpresas". Se os carros e as chaminés das indústrias continuassem emitindo gás carbônico, diziam, alguma coisa iria acontecer. Mas o quê?
Em 1995, os 2.000 maiores especialistas do Giec (Grupo Intergovernamental de Especialistas em Evolução Climática) da ONU alertaram os governos em seu "segundo relatório": "Modificações inesperadas, rápidas e de grande amplitude no sistema climático (como a que aconteceu no passado) são difíceis de prever. Assim, a evolução futura do clima pode nos reservar surpresas por causa do caráter não-linear do sistema climático."

15h30. Um bip toca nos fones de Paul: "Você está ouvindo o programa da rádio Meteorológica Global sobre Kyoto? É fácil reescrever a história depois que tudo já aconteceu", brinca Teo, um de seus colegas que trabalha em Up Nova York, a metrópole elevada em função da ascensão das águas do oceano Atlântico.
"Mas teve gente que previu o que ia acontecer", responde Paul. "Lembra do Broecker?" Foi o geoquímico norte-americano do Observatório Terrestre Lamont-Doherty quem identificou o calcanhar de Aquiles do sistema climático mundial: a corrente marítima conhecida como corrente do Golfo, "transportadora" de calor e umidade, corria o risco de "travar".
Orgulhoso de sua "nova teoria", Broecker havia dito: "Numa escala de vários milhões de anos, são as variações na órbita terrestre e na quantidade de radiação solar que regulam as mudanças climáticas. Mas o detonador das mudanças é o transportador."
O cenário que previu mostrou ser correto: a partir do final dos anos 2080, com uma atmosfera cada vez mais aquecida, as chuvas dobraram e a calota de gelo do pólo Norte derreteu. Ao derramar-se no oceano, essa água fresca e doce tornou a superfície oceânica bem menos densa. De repente, a água quente e salgada da corrente do Golfo se diluiu, e o circuito planetário da corrente foi interrompido.
"Não há motivo para pânico. Dentro de um ou dois séculos, o aquecimento global vai compensar a sua ondinha de frio na Europa". Teo tem certeza de que o "efeito bola de calor" -que já provoca estragos na América, Ásia e África- vai acabar chegando à Europa.

Bangladesh, 18h. Entre Dacca e Shillong: A bordo de seu helicóptero, Sari acaba de sair da plataforma da ONU, construída sobre estacas em Dacca, antiga capital de Bangladesh, há quase 60 anos. O helicóptero voa a uma altitude de 1.500 m, rumo a Shillong.
As palmeiras que margeiam as avenidas se afogam e apodrecem na água quente e salgada da baía de Bengala. Os arrozais estão submersos. "Que inferno! E pensar que há 20 anos as neves do Himalaia derreteram e incharam o Ganges e o Brahmaputra, submergindo o delta. Não havia mais água doce. A fome se alastrou pelo país. Agora é o mar que está subindo, e os ciclones, chegando", pensa Sari.
Segundo suas estimativas mais recentes, a elevação do nível do mar em mais de um metro inundou quase 17% da superfície de Bangladesh, deixando desabrigadas mais de 70 milhões de pessoas. Na úmida cabine do helicóptero, o infectologista bengali Somansu recorda sua última missão na África, abortada devido à sexta guerra de água em torno do rio Okavango.
"Tudo por lá está queimado. Praticamente não chove mais. O deserto avança", diz ele. Guerras de água estouram por toda parte no mundo. Mais de 200 fontes de água doce são disputadas por vários países. "E não há como reduzir a incidência de febre amarela, dengue e malária", comenta Sari. Um século depois de Kyoto, a malária ainda é a maior causa de mortalidade da população mundial, que já chega a 16 bilhões.

Em algum lugar do mar Egeu, 21h. QG submarino das forças do Atlântico Norte: A guerra da água não é a única a devastar o mundo. Mais do que nunca, há o petróleo e o gás. O general Peng acaba de anunciar: "Vamos retomar o controle do oleoduto a partir de janeiro de 2098." O comandante das forças do Atlântico Norte responde, por satélite, à tentativa de mediação do presidente da Europa.
No século anterior, Michel Mousel, membro da delegação francesa, já havia soado o alarme: "A questão geopolítica em jogo é importante. A proposta de regular as emissões de gás carbônico também representa uma tentativa de equilibrar o acesso futuro aos combustíveis fósseis. Se os maiores poluidores, como os EUA, se negarem a cooperar, e continuarem deixando suas indústrias poluírem, sem modernizá-las, as tensões em torno das jazidas vão redobrar", declarou em 1997 ao "Libération", pouco antes de partir para Kyoto.
Vários confrontos entre as forças atlânticas e a Confederação Pérsio-Asiática já tiveram lugar no mar Egeu. As disputas se dão em torno da jazida petrolífera do mar Cáspio e do oleoduto que chega ao Bósforo e seu Chifre de Ouro. Após a segunda guerra greco-turca, a estratégia de infiltração do Taleban pelos serviços secretos norte-americanos mudou repentinamente. Mas a escassez de petróleo ameaça os EUA. Assim, o general Peng manda o presidente europeu passear e prepara seus mísseis.

Paris, meia-noite. Epílogo: Paul chega ao fim de sua semana de dois dias de trabalho. O engenheiro Aziz, dois anos mais velho, toma seu lugar na torre. Paul sai para comprar um cartucho de hidrogênio para seu novo Volkswagen. Suspira ao relembrar seu velho carro híbrido, com a aceleração elétrica de que tanto gostava.
Mas, de qualquer jeito, ele só pode usar o carro dois dias por semana, devido aos engarrafamentos. Ele volta ao seu apartamento, com vista para o pátio do Louvre. Paul e Sari usam o programa habitacional europeu de repovoar os centros das grandes cidades.
Em 2050, vários museus parisienses foram transformados em unidades habitacionais, para ajudar a evitar o deslocamento dos moradores da cidade. "A catástrofe não deixa de ter seus lados positivos", reflete Paul.
A noite oleosa cai sobre Paris. A pirâmide do Louvre está recoberta de gelo cinzento.
*
Este roteiro foi extrapolado a partir dos modelos científicos mais recentes divulgados pelo Giec ("The Regional Impacts of Climate Change"), que podem ser encontrados na Internet no endereço http://www.ipcc.ch. Sobre a hipótese relativa à corrente do Golfo, ver as pesquisas do laboratório Geomar da Universidade de Kiel e o artigo de Wallace S. Broecker na revista "Science" de 28/11/97.

Tradução Clara Allain

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