São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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As duas esquerdas

MILTON SANTOS

Quem observa os rumos atuais do processo político fica sem saber qual a orientação dos partidos quanto a distinguir, nas afirmações de fundo e nas manobras chamadas de conjuntura, o que é permanente e o que é ocasional e como os dois se combinam. A pretexto de que agrupações partidárias existem para perseguir o poder, assistimos a um esgarçamento do que resta de propriamente político na vida partidária.
Nesse quadro, confusões persistentes são alimentadas, como a assimilação que é levada ao grande público entre partidos de esquerda e partidos de oposição -como se, nas condições atuais, tudo que não é ou ainda não consegue ser governo participasse obrigatoriamente do campo do progresso.
Assistimos pelo menos duas vezes, na história do Brasil, a situações parecidas, mas em condições que não eram caricaturais: a primeira no fim da Segunda Guerra, a segunda mais recentemente, na saída do regime militar.
Em ambos os casos, era a questão da liberdade que se colocava em primeiro plano, como forma de encontrar, dentro das regras democráticas, um substitutivo à longa noite do regime autoritário. Tudo era claro: todos os defensores da liberdade podiam andar juntos.
Agora, com a globalização, sistema econômico-social que se alimenta da confusão dos espíritos, somos todos potencialmente vítimas de um lusco-fusco cientificamente fabricado.
A proximidade das eleições agrava o problema, já que é dado como prioritário desmantelar o aparelho de Estado sem ter muito claro o que fazer depois. Assim, as combinações mais disparatadas e espúrias podem se impor como um caminho auspicioso e normal.
Trata-se, mais uma vez, do convite à prevalência do jogo eleitoral sobre o jogo político, levando, como nos pleitos anteriores, à instalação da balbúrdia no espírito dos eleitores, na medida em que nessas condições o processo da política renuncia ao seu papel pedagógico. Ora, a democracia não se constrói sem partidos que digam claramente qual é o seu projeto de nação, sua visão de mundo e das relações interpessoais no país -e que ajam em consequência.
Como no mundo atual nada se faz sem o respaldo de idéias, é aí que aparece o novo papel do intelectual na reconstrução democrática do Brasil. O intelectual não pode ser dúbio nem oportunista. Mas, nas circunstâncias atuais, a intelectualidade é chamada a exercer uma militância ambígua, quando voltada a repetir discursos fátuos, slogans e palavras de ordem mais destinados à mobilização do que à produção gradual de uma consciência coletiva.
Frequentemente, os partidos brasileiros atribuem aos intelectuais, próprios ou alheios, muito mais um papel de bobos da corte, chamados a enfeitar por um dia ocasiões propícias, do que um trabalho destinado à criação de idéias que expliquem sistematicamente o lugar, o país e o mundo.
É necessário o papel de partidos como PT, PDT, PC do B, PSB, PV, PSTU e PPS, que, opondo-se ao governo, enfrentem a situação atual e obtenham, em vista disso, sucessos eleitorais.
Muita gente descontente, por motivos ideológicos ou pessoais, grupais, setoriais, regionais, oferecerá seu sufrágio às agremiações rebeldes. O risco, já experimentado, é o de ganhar eleições e perder a oportunidade de ajudar a fortalecer uma vida partidária sisuda.
O ideal da construção de um debate político verdadeiro e a saúde política da nação residem na elaboração e na difusão de sistemas de idéias operacionais diante da realidade, que estejam acima de preocupações de estratégia e tática.
Aí entra o papel independente dos intelectuais. Na medida em que estes façam eco às demandas profundas das populações, expressas pelos movimentos populares (organizados ou não), servirão como vanguarda na edificação de projetos nacionais alternativos.
Na atual vida política, haverá pelo menos duas esquerdas: a que, nos partidos, age ao sabor do dia-a-dia e a esquerda intelectual, portadora de um pensamento de mais longo alcance e despreocupada de aspirações de poder.
Se desejamos alcançar no Brasil, rápida e firmemente, uma vida política séria e consistente, não há outro caminho senão o de um trabalho simultâneo, mas autônomo, entre esquerdo-pensantes e esquerdo-agentes. Por enquanto, a construção sólida da democracia brasileira reside na evolução separada dessas duas esquerdas.

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