São Paulo, segunda-feira, 8 de dezembro de 1997
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Aventuras da Aids no mundo das metáforas

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Um livro complicado. Coordenado por dois alemães e contando com franceses também chegados a uma frase longa, "Materialities of Communication" (Materialidades da Comunicação, Stanford University Press) pretende dar adeus à interpretação e tratar basicamente das condições e formas que contribuem para a emergência do sentido: o corpo humano, os computadores, a televisão.
O mais simples e oportuno ensaio do livro é sobre Aids, assinado por Alois Hahn, centrado nos paradoxos que o discurso sobre o vírus trouxe para nosso comportamento cotidiano.
O primeiro dos paradoxos de Hahn é um pouco discutível. Ele acha que a doença progrediu, em relação a outras, muito pouco na Alemanha.
No final de 88, 2.779 estavam contaminados, mas a Aids já era um fenômeno de mídia. Não é uma grande cifra e Hahn afirma que se pode dizer que a Aids circula mais rapidamente na consciência das pessoas do que em suas correntes sanguíneas.
O livro foi lançado há quatro anos, logo não poderia trabalhar com os dados que temos hoje sobre a progressão real da Aids e, sobretudo, sobre sua velocidade de propagação. Poucas doenças se alastram com tanta facilidade.
Dizer que a Aids circula nas consciências significa pouco se não constatarmos, em países como o Brasil, que a tomada de consciência do perigo nem sempre representou mecanicamente um comportamento cauteloso. Quantos sabem da Aids e ainda assim não usam camisinha?
Hahn vai buscar novos paradoxos na questão dos exames que dividem a humanidade em duas partes: os estrangeiros e não-estrangeiros, os soropositivos e os soronegativos.
Simpatizantes do Front Nacional, a extrema direita da França, consideram que o inferno são os outros e que há uma nação pura, virtuosa e saudável sendo, constantemente, invadida pelos imigrantes. Mas caminham rápido para o paradoxo: os nacionais têm de fazer o teste, é a única maneira de provarem que não são estrangeiros.
As coisas se complicam mais quando nos afastamos da extrema direita e mergulhamos no próprio cotidiano. A vida implica num fluxo de contatos físicos e sexuais. Mas, na fantasia extremada, qualquer contato pode ser mortal.
Evitar todo risco significa evitar a vida. Cai-se então no velho paradoxo, anterior à Aids: a única maneira de não morrer é não estar vivo.
Creio que um médico tcheco expressou melhor esse paradoxo do que Alois Hahn em seu ensaio: a vida é uma doença letal contraída com a relação sexual de nossos pais.
Novos e complicados desdobramentos vão surgindo, na medida em que Hahn se aprofunda no tema. Muita gente interpreta a Aids como um castigo, um descuido, uma culpa biográfica. Mas a pessoa atingida, com razão, reclama o direito de que sua doença não seja tratada como uma metáfora. Ela não tem sentido nenhum.
A integração de um mal natural ao mundo da cultura só faz acrescentar o horror à doença, adicionando difamação ao sofrimento, ampliando a dor.
Interpretar significa, nesse caso, uma ameaça à dignidade da pessoa. Deixar de interpretar, por outro lado, a condena a viver um doloroso absurdo.
Um ponto que me parece claro: os testes vão prosseguir, pois é só testando que a pessoa sabe se está ou não contaminada. E os testes funcionam como uma espécie de confissão moderna. Nela, não se trata mais de revelar a alma, mas de examinar o que Goethe chamava de o mais precioso suco.
O teste, para Hahn, funciona também um pouco como a prova de arianismo para os nazistas. Ele representa quem verdadeiramente pertence à nação dos puros, quem representa uma alteridade mortal.
A Aids talvez tenha sido uma das doenças modernas mais expostas ao discurso totalitário. Desde os campos de isolamento em Cuba às teses de um professor de Frankfurt, que propunha que todo soropositivo levasse uma tatuagem nos seus órgãos genitais.
Boa parte do ensaio de Hahn se dedica ao exame do comportamento de quem se descobre soropositivo, suas contradições na relação com as pessoas amadas. Ao revelar sua doença, corre o risco de ser abandonado; ao esconder, trata a pessoa amada como se não fosse amada.
Fica no ar uma interrogação paradoxal: a preservação do liberalismo sexual pode conflitar com a preservação da própria sociedade?
Hahn procura examinar as saídas e admite que, momentaneamente, uma sociedade liberal pode se tornar antiliberal para sobreviver.
Essas reflexões um pouco sombrias partem da hipótese de testes obrigatórios. Interessante como falando de materialidade, fim da interpretação etc., Hahn não tenha investigado o próprio ato sexual em tempos de Aids, não tenha aberto uma janela para o corpo amoroso que, sem dúvida, inventou novos caminhos diante do perigo da penetração sem preservativos.
Esse ponto talvez trouxesse um novo paradoxo. Apontada como um elemento contra-revolucionário, a Aids sem dúvida contribuiu para a monogamia e mesmo a abstinência. Mas quem pode avaliar o quanto contribuiu para a erotização de todo o corpo humano, de um modo geral fixado nas regiões genitais?

Livro: Materialities of Communication
Autor: Hans Ulrich Gumbrecht K. Ludwig Pfeiffer
Lançamento: Stanford University Press

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