São Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 1997
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Memórias póstumas de uma estratégia

ANTÔNIO BARROS DE CASTRO

Os chamados pais do Real certamente não dispunham de uma visão ou proposta estratégica, no que concerne ao crescimento da economia. E isto poderia ser facilmente justificado, antes de mais nada, pelo fato de que a derrota da inflação de há muito passara a ser entendida como precondição para a retomada do crescimento.
Muitos, porém, dentro ou fora do governo, iam muito além dessa posição. Para eles, a economia de mercado (que estaria, finalmente, sendo implantada no país) é um sistema auto-impulsionado e, mais que isso, autocorrigível. Se assim é, faz pouco ou nenhum sentido pretender estabelecer estratégias singulares de crescimento. Cabe apenas, na simplória e arrogante fórmula preferida de alguns, "fazer o dever de casa".
De fato, para que faça sentido a busca e implementação de estratégias de crescimento para a economia como um todo, é preciso reconhecer que os contextos históricos (domésticos e externos) não apenas diferem entre si, como podem ser mais ou menos propícios à expansão econômica. Há além disso que admitir que existem diferentes encaminhamentos na busca de soluções para importantes problemas, e que as decisões tomadas, especialmente pelos grandes atores, entreabrem possibilidades e introduzem restrições (presentes e futuras) à conduta dos demais.
Na realidade, não foi se não após um longo e sofrido caminho que o governo brasileiro veio a definir (ou decantar historicamente) uma estratégia de crescimento.
O primeiro passo para a construção desta estratégia nasceu da tentativa de responder àqueles que, desde o lançamento do plano, condenavam a política cambial adotada. A defesa por parte do governo consistia, à época, em argumentar que a apreciação cambial eventualmente ocorrida estaria sendo (ou já teria sido) comida pelo intenso aumento da produtividade. Em consequência, não procederiam a vulnerabilidade e a insustentabilidade antevistas pelos críticos. Bombardeado por uma série de argumentos e negado por evidências empíricas, o argumento veio a perder a importância que inicialmente lhe fora atribuída por membros da equipe do governo. Mas permaneceu, subjacente, como, digamos, um ingrediente da (futura) estratégia. Afinal, ninguém nega que a produtividade esteja aumentando rapidamente no Brasil -e que, se assim é, o tempo joga (vista a questão por esse ângulo) a favor do país.
O segundo elemento da estratégia surgiu como um filho bastardo e até hoje não propriamente reconhecido da política do governo. Refiro-me à proteção especial para determinados setores. A grande referência aqui é, evidentemente, o regime especial para a indústria automobilística. Os guardiões da ortodoxia tenderam a retratá-lo como uma recaída protecionista. Mas o governo não apenas o manteve, como passou a apontar os investimentos a ele associados como novo símbolo do Real.
O terceiro elemento custou a nascer. De fato, durante um longo período, Edmar Bacha e Francisco Lopes, para citar dois nomes, insistiram em que as correções introduzidas no plano, especialmente em 1995, haviam eliminado a ameaça trazida por déficits comerciais rapidamente crescentes. A galopante expansão do déficit comercial na transcrição de 1996 para 1997, no entanto, demonstrou o equívoco dessa crença. Reconhecido o fato, começou a se delinear clara e assumidamente uma política de apoio às exportações.
Em simultâneo foi tomando corpo a política de desvalorizações nominais do real acima da inflação. A estas alturas já se havia evidentemente admitido a existência de um problema cambial. Mas esperava-se que as reações dos agentes econômicos, reforçadas pela desvalorização gradual -e pela redução do custo Brasil- permitissem à economia contornar o problema. Dispúnhamos, em suma, desde então, de uma estratégia, improvisada, mas assumida.
A última peça a ela acrescentada surge como descoberta de última hora. O atraso do programa brasileiro de privatizações, objeto de inflamadas condenações, ressurge, no caso, como um trunfo de que dispõe o país. O argumento é conhecido. A privatização, concentrada nos críticos anos que se estendem de 1997 a 1999, permitiria ao país atravessar esses anos, sem expandir insuportavelmente a dívida interna e o déficit de transações correntes. Em 2000, por fim, a competitividade alcançada em numerosos setores (beneficiada pela desvalorização gradual do câmbio e pelo amadurecimento de investimentos no campo da infra-estrutura) permitiria à economia começar a inverter os sinais, até então altamente desfavoráveis, de seu balanço de pagamentos.
Parece válido afirmar que a estratégia gradualista, penosamente construída ao longo dos últimos três anos, morreu na última semana de outubro. É impossível negar, no entanto, que os dados apresentados pela economia, nos meses que antecederam a eclosão da crise, revelavam uma inextricável mistura de sinais positivos e negativos. Na minha visão, essa experiência ficará como um enorme esforço por meio do qual empresas e governo procuraram contornar as consequências de um erro capital, cometido nos primeiros dias do plano.

Antonio Barros de Castro, 58, professor-titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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