São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 1997
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Micro e macro

JOÃO SAYAD

Procuro sempre saber a origem das opiniões com as quais não concordo. Não é por boa vontade ou tolerância. Ao contrário, é por desconfiança e preconceito.
Será que os neoliberais foram filhinhos de papai que nunca passaram por dificuldades? Ou, ao contrário, são "self made men", vencedores que acreditam que este é o melhor dos mundos, pois, afinal de contas, reconheceu os seus méritos?
Ou será a idade que transforma jovens radicais de esquerda em respeitáveis neoliberais radicais? Antes, queriam moldar o mundo segundo sua vontade. Agora, acham que o mundo está moldado, e o que está aí é o melhor mundo possível.
Às vezes é muito fácil entender a mágica dos argumentos neoliberais. Trocam microeconomia por macroeconomia, conforme a conveniência da discussão.
Quando interessa, são macroeconomistas radicais. Fazem abstrações, esquecem a variedade de produtos, diferenças de gostos e de pessoas.
Supõem que o país produz um produto único -uma espécie de geléia que pode ser consumida, investida, transformada em pontes e viadutos ou suco de laranja.
No caso do déficit da balança comercial, por exemplo, supõem que estamos consumindo mais geléia do que produzimos. A geléia que falta é importada. Quem consome mais do que produz está tomando empréstimos.
Para corrigir é preciso cortar empréstimos que financiam consumo de geléia. Aí entra uma questão de gosto -consideram o governo menos eficiente do que o setor privado, e propõem cortes no consumo de geléia do governo, ou seja, o déficit público.
A geléia é uma abstração inadequada. Os produtos que compõem o famoso PNB não são substituíveis entre si, como se fizessem parte de uma mesma geléia. Soja e suco de laranja, por exemplo, são produtos cuja exportação é muito importante e cujo consumo interno é pequeno em relação à quantidade produzida. Não há demissão de funcionário público ou corte de despesas com segurança que aumentem a exportação de suco de laranja por redução do consumo brasileiro.
Quando consumimos mais geléia do que produzimos, estamos gastando mais dinheiro com importação de micro do que recebemos com as exportações de soja. Não se pode falar em "excesso de demanda" de geléia, sem considerar os produtos exportáveis, importáveis e os domésticos e o preço relativo entre eles, ou seja, a taxa de câmbio.
Quando se corta o gasto do governo, cortamos a produção de bens consumidos pelos mais pobres, como educação, transporte público e segurança, que, para os pobres, ainda é serviço público. Não se reduz a importação. Somente sob a hipótese macroeconômica da geléia, déficit público e déficit comercial estão intimamente ligados.
Mesmo assim, é preciso que exista demanda excessiva de geléia, o que, no caso atual do Brasil e do mundo, não é verdade. Afinal de contas, existe desemprego, ou seja, poderíamos produzir mais geléia do que produzimos atualmente.
Em outras situações, neoliberais se convertem em microeconomistas radicais. Nada de abstrações ou de geléias. Pensam como se o país fosse empresa isolada.
A taxa de câmbio, por exemplo, é vista como o preço da banana. Em microeconomia e no caso de bananas, podemos supor que, quando varia o preço do produto, todas as outras coisas da economia ficam constantes.
Não é bem verdade que tudo fique constante, quando aumenta o preço da banana. O consumidor fica mais pobre, pode reduzir o consumo de outras coisas. Mas a redução do consumo de outras coisas não é importante. Mais pobre, o consumidor pode poupar menos, mas o efeito é irrelevante. Portanto, é melhor estudar a banana isoladamente e esquecer o resto.
Por outro lado, quando muda o câmbio, muda quase tudo na economia. Muda a rentabilidade dos investimentos para o mercado interno versus externo. Cai o salário real medido em termos de importáveis (o mesmo salário comprará menos soja e carros importados) e aumenta a rentabilidade das exportações.
Além dos efeitos sobre todos os outros setores econômicos, há efeitos macroeconômicos. Muda o déficit público, muda a quantidade real de moeda, muda o salário real. A abstração banana-dólar é inadequada.
Na semana passada, os metalúrgicos discutiram a redução da jornada de trabalho e de salários. O neoliberal microeconomista argumenta que, quando diminui o salário, a Volkswagen contratará mais trabalhadores.
Mas o salário do metalúrgico influencia o salário do químico, do bancário, do escriturário. Quando cai o salário do metalúrgico, podem cair todos os salários. Neste caso, os trabalhadores ficam mais pobres, gastam menos, e diminui o emprego. Ou então caem os preços, e o salário real não se reduz. E o emprego não aumenta. Salário não é problema micro.
Os físicos enfrentam problema semelhante. Devem usar a física clássica do Newton ou a teoria da relatividade. Para ir à Lua, basta a física do Newton, não é preciso complicar. E já fomos à Lua. Os economistas, ao escolher entre micro e macro, enfrentam a mesma dúvida. Mas não têm acertado. Há muito tempo que não saímos do mesmo lugar.

E-mail: Jsayad@ibm.net

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