São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 1997
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UM DOS TRECHOS POLÊMICOS

"Eis o que finalmente acabou com Salman para Maomé: a questão das mulheres; e a dos versos satânicos. Escute, não sou nenhum fofoqueiro, confidenciou Salman já bêbado, mas depois da morte de sua mulher, Maomé não era nenhum anjo, se entende o que quero dizer. Mas em Yathrib ele achou quem o enfrentasse. As mulheres de lá: elas fizeram sua barba ficar grisalha em um ano. O problema com nosso Profeta, meu caro Baal, é que ele não gostava de mulheres que o enfrentassem, ele procurava mães e filhas, lembre-se de sua primeira mulher e depois de Ayesha: muito velha e muito jovem, seus dois amores. Ele não gostava de brigar com gente de seu tamanho. Mas em Yathrib as mulheres são diferentes, você não sabe como é, aqui em Jahila vocês estão acostumados a dar ordens às mulheres, mas lá elas não aceitam isso. Quando um homem se casa, ele vai viver com a família da mulher. Imagine! Chocante, não? E, depois de casada, a mulher continua a ter sua própria tenda. Se ela quer se livrar do marido, vira a entrada da tenda para a direção contrária, para que, quando a procure, ele encontre tecido no lugar da porta, e isso é tudo, ele está expulso, divorciado, sem poder fazer nada a respeito. Bem, nossas garotas estavam começando a ter essas idéias, por isso, na mesma hora, bang, aparece o livro de regras, o anjo começa a despejar regras sobre o que as mulheres não podem fazer, começa a abrigá-las a voltar às atitudes dóceis que o Profeta prefere, dóceis e maternais, caminhando três passos atrás ou sentadas em casa, mostrando sabedoria e se cuidando. Como as mulheres de Yathrib riam das fiéis, mas juro que o homem é um mágico, ninguém podia resistir a seu charme; as fiéis faziam o que ele lhes ordenasse. Elas se submetiam: afinal, ele lhes oferecia o Paraíso.
'Bom', disse Salman quase no fim da garrafa, 'finalmente decidi testá-lo'.
Uma noite o escriba persa teve um sonho no qual flutuava sobre a figura de Maomé na caverna do Profeta em Monte Cane. No começo Salman pensou que fosse apenas uma lembrança nostálgica dos velhos tempos em Jahilia, mas então percebeu que seu ponto de visão, no sonho, era o mesmo do arcanjo, e naquele momento a lembrança do incidente dos versos satânicos lhe voltou nitidamente, como se a coisa tivesse acontecido na véspera. "Talvez não tenha sonhado que era Gabriel", Salman recordou. "Talvez eu fosse Satã."

Um dos trechos do livro "Os Versos Satânicos", de Salman Rushdie, considerado ofensivo pelos muçulmanos, em tradução não-oficial para o português

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