São Paulo, terça-feira, 23 de dezembro de 1997
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Adeus às ilusões

ALDO REBELO

Quando os historiadores se debruçarem sobre as décadas finais do século 20, 1997 será reconhecido provavelmente como um ano de transição, em que setores sociais cada vez mais amplos começaram a descobrir a face perversa e os limites objetivos do projeto neoliberal e neocolonial de reconstrução capitalista, lançado pelos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan.
Em 1997, até estratos dirigentes de países desenvolvidos começaram a se distanciar desse projeto. Percebeu-se que ele expressa também uma tentativa de reafirmar a hegemonia irrestrita dos EUA sobre o mundo, tanto militar e diplomática quanto econômica e cultural, voltando-se não apenas contra as experiências socialistas, mas também contra os modelos capitalistas alternativos, como o europeu continental e o nipo-asiático, no afã de impor como exclusivo o modelo anglo-americano.
É preciso ressalvar que a contra-ofensiva americana não se esgotou. Ela procura, neste momento, aproveitar-se das dificuldades asiáticas para arrancar a completa abertura comercial e financeira dos mercados desses países e o enfraquecimento do apoio estatal a suas indústrias. Mas é indiscutível que a reestruturação neoliberal perdeu muito de sua força sedutora e enfrenta uma resistência crescente.
Os efeitos sociais foram os primeiros a se evidenciar. As elevadas e crescentes taxas de desemprego e subemprego; a corrosão dos salários e a reconcentração da renda, inclusive nos EUA; a privatização e a degradação de serviços públicos essenciais, ao contrário das promessas de que os Estados reformados concentrariam seus recursos nesses setores -todos esses processos abriram os olhos de extensos segmentos de trabalhadores e os levaram a fincar pé na defesa de suas conquistas.
O aumento das brechas entre o centro e a periferia do mundo capitalista e entre os Estados Unidos e os demais países centrais provocou impactos semelhantes nos sentimentos nacionais.
As greves e protestos na Europa, as mudanças de governo na França e na Inglaterra e os resultados eleitorais no México e na Argentina representam sinais dessa insatisfação crescente e da procura de alternativas políticas. Teve o mesmo sentido a grande manifestação popular que recebeu a marcha dos sem-terra em Brasília, em abril.
A crise financeira e econômica dos "tigres asiáticos" completou o quadro, evidenciando que são falsas também as promessas de desenvolvimento auto-sustentado e equilibrado.
Com os processos ampliados de internacionalização e financeirização, o sistema capitalista mundial se tornou mais integrado, mas também muito mais desigual e instável. Nesse contexto, adianta pouco para os países periféricos valorizar artificialmente a moeda, baixar a inflação e atrair capitais externos se o preço exigido é acumular reservas custosas, abrir indiscriminadamente seus mercados, desmontar seus setores públicos e pagar elevados juros aos investidores internacionais.
Com o tempo, esse curso destruidor freia o crescimento, inibe os investimentos produtivos e estimula os investimentos especulativos. Quando as "bolhas" espocam, os países são lançados em novo mergulho recessivo, as falências empresariais se multiplicam, o desemprego explode e as contas públicas e externas sofrem novo e mais grave desequilíbrio.
O presidente Fernando Henrique Cardoso comete um crime político e intelectual, portanto, quando pinta essa reestruturação do capitalismo contemporâneo como um novo Renascimento, uma era benfazeja de prosperidade econômica e progresso cultural.
Tendo abraçado avaliação tão desastrosa, não pode eximir-se da responsabilidade de ter mantido o Brasil nesse caminho destruidor, dando prosseguimento à reviravolta iniciada por Collor e tornando o país mais dependente do sistema capitalista mundial e mais vulnerável à ganância dos capitais de curto prazo.
Menos perdoável ainda é que, depois do abalo provocado pela crise asiática, insista na mesma orientação, mantendo a valorização artificial do câmbio, dobrando as taxas de juros, cortando gastos já comprimidos, aumentando impostos e tarifas, acelerando privatizações e empurrando o país no declive de nova recessão.
É uma calúnia afirmar que os partidos de esquerda e de centro-esquerda se opõem a esse rumo porque desejam que a situação do país piore, para tirar proveito eleitoral. Eles estão cansados de saber que a situação piora muito mais para os trabalhadores e para os pequenos e médios empresários. Combatem o rumo do governo porque estão convencidos de que é possível uma orientação alternativa, menos danosa ao país e a seus trabalhadores.

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