São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 1997
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A voz da Marambaia

ELIO GASPARI

Carta encontrada hoje na rua do Ouvidor, escrita pelo comendador Joaquim José de Souza Breves (1804-1889) e endereçada a sua mulher:
"Querida Maria Isabel, como você sabe, o presidente veio passar as festas nas nossas terras da Marambaia. Fiquei tocado pela gentileza de seus camareiros e da Marinha. Não mencionaram meu nome e, quando falaram do galpão que lá construí, disseram que se tratava de um ponto de recepção de escravos. Fizeram muito bem. Ficou a impressão de que os negros ali chegavam como viajantes prussianos. Bastaria lembrar que a edificação da Marambaia se destinava a receber os crioulos boçais longe das vistas da patuléia e recomeçaria aquela conversa enjoada, acusando-me de ser um traficante de escravos.
"Você sabe como a inveja persegue os empreendedores. Se meu nome fosse associado às férias do presidente, voltariam a rodar o realejo: o comendador é o homem mais rico do Brasil, tem 4.000 escravos, acosta-se com negras (o que é mentira, você sabe), rouba as eleições (o que é verdade, todos sabem). Não lhes ocorre lembrar que o meu café é responsável por quase 1% das exportações brasileiras. Essa gente só tem lembrança para porcarias. Imagine que um americano escreveu um livro dizendo que eu tinha medo de andar pelas estradas. Esse sujeito descobriu num arquivo inglês que o governo de Sua Majestade me chamava de 'importador de escravos da Marambaia'. Seu nome é Richard Graham. Talvez seja descendente daquela Maria nariguda que os maledicentes diziam ser namorada do almirante Cochrane.
"Já tive aborrecimentos suficientes neste ano. Sofri muito sabendo que, na última biografia de Napoleão, publicada na América, dão por estabelecido que o general Montholon envenenou o imperador em Santa Helena. Eu sabia que ele era larápio e mentiroso, mas, desde que nossa neta Paulina casou-se com seu filho, fiz que esqueci. Veja como ficamos: pensamos ter casado a menina com o filho de um falso marquês e acabamos associando a casa dos Breves à família do assassino de Bonaparte (dava-lhe arsênico e cianeto de mercúrio).
"Agora, umas palavras sobre nosso hóspede. É de cor, disso não há dúvida. Ele brinca dizendo que tem um pé na cozinha. Não gosto de sua ascendência paterna. Imagine que são cinco gerações de militares. Dois meteram-se em badernas, e o avô participou da sedição republicana. Esteve naquela cena terrível em que um major entregou a ordem de banimento ao nosso imperador. Se levas em conta que o nosso hóspede foi professor público, hás de constatar que esses Cardoso estão por aí há quase dois séculos, mas nunca plantaram um pé de café. Pelo lado materno, felizmente, descende de comerciantes. Parece-me melhor nascida a senhora.
"Sua política é boa. Deu-se conta do excesso de proteção que o governo deu à mão-de-obra livre. Quando eu dizia que não se devia esperar muito daqueles italianos anarquistas e falastrões que o imperador mandou para São Paulo, diziam que exagerava. Acusavam-me de ter saudades do tráfico negreiro. Pois agora eles estão vendo que o nosso operário não alcança a produtividade dos chineses. Acham que é coisa das leis. Um dia vão se dar conta da origem de nossos males: o clima. A preguiça tropical, e isso não há quem mude.
"Cardoso precisa ser ajudado. Toda a gente graúda que conheço vive com menos liberdade que os ladinos de nossas fazendas. Imagine que um descendente do barão de Piraí mora num edifício cercado de grades. Uma verdadeira jaula. Inventaram um negócio chamado condomínio, todos murados e cheios de guardas. Eu teria muito prazer em mostrar essas coisas aos abolicionistas. Você é testemunha de que nunca precisamos cercar nossas senzalas.
"Precisamos ajudá-lo porque Cardoso tem nos ajudado no que pode. Estamos com uma taxa de juros de 2% ao mês, em dinheiro. Sabes o isso significa? Se vendêssemos nossos 4.000 escravos à época em que construímos a Marambaia, receberíamos uns R$ 30 milhões. No banco, renderiam R$ 600 mil por mês. Hoje em dia, com R$ 2.000 mensais você aluga um bom professor universitário. Veja só, Maria Isabel: nós poderíamos botar o dinheiro da escravaria no banco (sem correr o risco da abolição) e, com os juros, alugaríamos 300 professores. Todos brancos e bilíngues, como o Mauá. Nessas condições não há dúvida: a mão-de-obra é um avanço para produção.
"Agora me despeço. Nosso hóspede quer passear de barco. Acabo de saber que morreu hoje o conselheiro Mayrink, do Banco de Crédito Real. Pobre, foi o homem mais rico do Brasil, mas se perdeu na crise do papelório dos primeiros anos da República. Coisas que acontecem. Dê meus pêsames à viúva. O e-mail dela é proer@banca.gov.br.
Feliz ano Novo".

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