São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 1997
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"O Sétimo Selo" e a ficção de cada novo ano

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"O Sétimo Selo", filme de Ingmar Bergman relançado agora no Cinesesc, é uma daquelas obras de que a gente toma conhecimento na adolescência e, depois, se sente dispensado de rever. Ocorre o mesmo com "O Encouraçado Potemkin", de Eisenstein, com "Morte em Veneza", de Visconti, e mais ainda com "Limite", de Mario Peixoto, por exemplo.
Na literatura, o fenômeno é ainda mais grave. Há livros que, no fundo, sabemos que nem é preciso ler. "1984", de Orwell, "O Processo", de Kafka, "Esperando Godot", de Beckett, "As Viagens de Gulliver", de Swift, e o próprio "Dom Quixote" se deixam tão bem resumir numa fórmula, numa idéia, numa imagem que "já sabemos" como são. Incorporaram-se ao patrimônio cultural como emblemas, como mitos -como realidades-, para além de sua existência literária. Tendem a se perpetuar pela tradição oral.
Talvez seja esse o destino de um verdadeiro clássico. Só que há outro tipo de clássico, aquele que sobrevive com um nome enigmático, pela fama algo obscura, não pela imagem ou pela idéia que projetam: a "Eneida", de Virgílio, "Tristram Shandy", de Sterne, "O Vermelho e o Negro", de Stendhal etc. Dependendo do caso, são lidos ou não.
Na obra de Bergman, "Morangos Silvestres" é um clássico do segundo tipo. Assisti ao filme também na adolescência e, agora, lamento dizer, não me lembro de praticamente nada. O que não deixa de ser uma vantagem: presumivelmente mais complexo do que "O Sétimo Selo", "Morangos Silvestres" convida à revisão.
Hesitei muito antes de ver de novo "O Sétimo Selo". Lembrava-me bem, não do filme, mas de sua imagem, de seu mito: de tudo aquilo que nos dispensa de um contato com a obra.
Ou seja, resumindo: é a história de um cavaleiro na Idade Média que joga xadrez com a Morte. Trata-se do tipo de coisa que muitos adolescentes vão considerar genial. Temos aqui uma alegoria em estado puro, que não precisa ser examinada muitas vezes para ser entendida.
Talvez o mesmo se aplique a todos os clássicos do primeiro tipo. "Dom Quixote" ou "1984" seriam clássicos "alegóricos" também. E a alegoria, segundo uma visão clássica (a de Croce, por exemplo), tende a dispensar a leitura, já que oferece de imediato a sua tradução em idéias gerais.
Mas aquela que é provavelmente a obra mais alegórica da literatura ocidental, "A Divina Comédia", funciona na verdade como um clássico do segundo tipo. Ou seja, pouco nos importa saber que Beatriz é a Virtude e que a passagem de Dante pelos Infernos é um processo pedagógico, já que nada disso dispensa alguém de ler o livro.
Dante destruiu a alegoria pelo excesso de didatismo. Buscava tanto "o concreto" em suas imagens alegóricas que essas imagens passaram a valer por si mesmas, literariamente, esquecendo o que "significavam" do ponto de vista alegórico.
Nesse sentido, alguns de seus versos -"Caddi como corpo morto cadde" (Caí como corpo morto cai)- e a famosa repetição "selva selvaggia", "selva selvagem" funcionam como emblema (alegoria?) de sua obviedade poética; figuram uma duplicação do sentido, uma redundância, que é na verdade uma espécie de autofagia. A alegoria destrói a si mesma, pela transparência, dando lugar à materialidade dos episódios, dos personagens, dos versos.
Terminei fazendo de "A Divina Comédia" a obra máxima da literatura ocidental. Talvez eu não esteja muito errado. O julgamento omite, contudo, Shakespeare; e que autor capaz de mais alegorias -Lear, Hamlet, Macbeth- do que ele?
O "defeito", aí, talvez seja de outra ordem: Lear, Hamlet, Macbeth são "traduzidos" em demasia por nossa cultura. Nós é que os "alegorizamos", destituímos os personagens shakespearianos de sua realidade concreta para transformá-los em máscaras aplicáveis a qualquer rosto: o papa Paulo 6º era hamletiano, Ulysses Guimarães era um rei Lear, Maluf, um Macbeth... ridículo. Dante tem a vantagem de afastar interpretações e aplicações ridículas.
Jorge Luís Borges escreveu um texto em favor da alegoria, contestando Croce e defendendo Dante. Começo a perceber que o que faz de Borges um clássico de nosso tempo é o esforço de criar, a cada conto, a cada poema, uma espécie de alegoria "intraduzível".
Sabendo do destino de Beckett e Kafka, de Orwell e de Stevenson ("Dr. Jekyll e Mr. Hyde"), que foi o de serem clássicos do primeiro tipo, pensou na possibilidade de criar mitos "intraduzíveis" para o lugar-comum, que não fossem clássicos do segundo tipo, gênero Stendhal. Seu modelo é Dante, mas, como a obscuridade é "de rigueur" no modernismo, ou no pós-modernismo, Borges (desconfio) será lembrado como uma espécie de Kafka menor -ele próprio sabia disso, aliás.
A todo escritor, portanto, cabe gerir a própria posteridade. Eis um problema tanto estético quanto político, percebido por Valéry em sua conferência sobre Baudelaire, que inspiraria, aliás, tanto Borges quanto Harold Bloom: "O problema de Baudelaire era o de como ser um grande poeta depois de Hugo, de Musset, de Lamartine..."
Não por acaso, Baudelaire optou pela alegoria: o eterno captado em caricatura agônica, em gestualidade banal de estatuária; o ridículo e o trágico se confundem, assim como a forma e o conteúdo. Nesse sentido, Baudelaire foi o Dante moderno.
Mas voltando a "O Sétimo Selo". Tudo, nessa obra de arte, conduz a uma banalidade fundamental. O Cavaleiro joga xadrez com a Morte... genial!
Mas fico feliz, na reestréia do filme, ao ver que "O Sétimo Selo" não se resume a isso. Há uma cena de que tinha me esquecido completamente. É quando o Cavaleiro encontra o casal de saltimbancos, e a linda Bibi Andersson lhe oferece uma tigela de leite e outra, de morangos silvestres que ela colheu. Colheu embriagada de felicidade conjugal, de amor à vida e à simplicidade. O Cavaleiro agradece: "Quero guardar para sempre a lembrança deste dia como o leite desta gamela, com cuidado para não derramar".
Pois é isso mesmo o que acontece conosco: esquecemo-nos da mais bela cena do filme, derramamos o leite, privilegiando a imagem alegórica do Cavaleiro lutando contra a Morte. O que perdemos é a mensagem mais frágil, mais bonita (não direi mais otimista) de "O Sétimo Selo": a imagem daquela família de saltimbancos, que, reconhecendo a falsidade da vida, se entrega puramente à farsa. Eles pintam o rosto de branco, assim como a Morte tem pintado o seu, numa imitação inocente. E assim conseguem vencer a Morte: fogem dela, ao menos.
Assim como todos nós, que a cada novo ano, estamos mais próximos dela, mas enxergamos a data como uma renovação, como um novo nascimento. Ficção razoável: desde que não se derrame o leite, tão frágil, da gamela que oscila entre nossas mãos.

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