São Paulo, quarta-feira, 31 de dezembro de 1997
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Quase naufrágio

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Noite dessas, vi um documentário sobre o naufrágio do "Titanic". Breve teremos um filme sobre o mesmo assunto. Com o tempo, esse acidente está virando piada. Os homens deixaram-se morrer, cedendo lugar nos botes a senhoras e crianças. Muitos vestiram-se a rigor, pediram champanhe e esperaram a morte. Outros foram jogar pôquer, até que as cartas começassem a boiar na água gelada. A orquestra tocou até o fim, deve estar tocando até hoje no fundo do mar, como os sinos daquela catedral submersa de Debussy.
Tenho experiência própria para duvidar de tanta pompa na hora de um pega para capar. Bem verdade que não andei no "Titanic", mas numa famosa barca de Paquetá, a "Quinta" -que já tinha uma folha corrida lamentável. Se Marco Polo tivesse um dia viajado nela, não teria levado o macarrão da China para a Europa, ficaria o resto de seus dias em terra firme.
Deu-se que, em meio à travessia, não sei como, correu a notícia de que um cardume de baleias gigantescas havia adentrado a Guanabara. A "Quinta" estava na rota das baleias, a colisão era inevitável.
Bem, houve um corre-corre abominável, a bordoada foi geral. Não havia botes, mas umas rodelas de cortiça que teoricamente funcionariam como salva-vidas. Vi cenas homicidas de marmanjos brigando pelas cortiças. Eu era criança, mas nem tive tempo de fazer valer meus direitos, muito menos de invocar a convenção de Genebra. Fui empurrado e pisado ignominiosamente por um brutamontes, um tal de Arantes, que por sinal dizia-se amigo de meu pai.
Não apareceu baleia alguma, nem assim o pânico cessou. Vi um sujeito chorando, agarrado a um pedaço de banco. Gritava por Deus, por socorro e por uma enigmática Guiomar -não necessariamente nessa ordem.
De minha parte, achava um desperdício morrer tão cedo, sem direito a um pedaço de cortiça. Mas aprendi a lição: se passar por transe igual, aqui que darei lugar a senhoras e crianças!

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