São Paulo, terça-feira, 4 de fevereiro de 1997
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Impressões sobre 'Sertão das Memórias'

TATA AMARAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quem é José Araújo? Essa pergunta eu me fiz no dia em que cheguei a Toronto: Ramiro Puerta, curador dos filmes latino-americanos naquele festival, já me colocando num táxi, quer saber se eu gostaria de assistir a "Sertão das Memórias".
Dentro desse táxi estavam Araújo e Michelle Valladares, sua mulher e produtora do filme. Apresentações apressadas. Estamos indo ao cinema. É a primeira projeção do filme.
Corta: estou numa sala de cinema. Na tela, uma longa panorâmica por uma parede literalmente coberta de fotos, novas e antigas, que termina por revelar um casal idoso, sentado e olhando para a câmera, vestido com o apuro de um dia de festas.
Acordes decisivos interrompem a cena para dar lugar a uma imagem do sol se pondo em tempo real, com quatro homens a cavalo em contraluz. As cores são intensas, o plano é longo, tenho tempo para me lembrar do Apocalipse de São João e do plano final de "Terra em Transe".
As vestes dos homens montados trazem elementos que misturam àquelas dos cangaceiros e dos cavaleiros medievais. Não posso ver muito, já disse, os cavaleiros estão na contraluz. Mas sua presença é impressionante.
Sou literalmente catapultada, ao longo do plano, para um universo denso, mítico. Os letreiros vão se sobrepondo a essa imagem, mas eles não atrapalham meu mergulho. Nos créditos, reconheço dois nomes: fotografia de Antônio Luiz Mendes Soares e música de Naná Vasconcelos. Aaahhh!
A música passa a nos transportar para um novo território: uma panorâmica pela linha do mar e do céu acaba por descortinar a mulher idosa da cena anterior em primeiro plano.
Uma voz off, que José Araújo define como voz interior dos personagens, passa a recitar:
"Tudo acontece no instante do mundo
A soma de todos os meus momentos,
Vivi anos após anos:
andei estradas, subi montanhas, nadei mares.
Rezei todos os rosários, senti a dor do pobre.
Senti a fome apertando no meu estômago".
Nesse momento, a câmera nos mostra a mulher em plano geral, a água ao fundo. Essa mulher se parece com Jesus Pescador. Uma "Ave Maria" começa a ser cantada baixo. A voz interior continua:
"Quero contar minha passagem da vida
através dos acontecimentos.
E a contagem das minhas genuflexões
frente ao Senhor e à Virgem Maria Santíssima.
Aprendi a maternidade com a mãe de Deus.
Com seu exemplo de abnegação e sacrifício
por Jesus seu filho querido.
Sigo minha viagem com abnegação e penitência.
Sou Maria de todas as dores".
Nesses primeiros momentos do filme, já me sinto onde o autor parece querer me colocar: num sertão diferente daqueles que eu havia visto em outros filmes (só conheço o sertão dos filmes). Estou no sertão das memórias de José Araújo.
Penso em Hesíodo e na Teogonia: o poeta inicia o poema evocando as musas que vão cantar a história dos deuses. Aqui, nesse sertão, não há deuses nem heróis cheios de glória para cantar. Há a sensação -como havia na época em que os menestréis cantavam de cidade em cidade- de que o sertão é de verdade.
Real e imaginário
Não há limite entre o real e o imaginário, entre o real e o mítico. Nem entre eu e o sertão, nem entre Maria de hoje e a Maria que tem visões. A Maria que canta as dores do mundo é a mesma que se mostra formal na primeira cena do filme. É a mesma que se parece com Jesus Pescador.
Maria segue cantando que encontrou beatas no rio Eufrates. Vejo mulheres lavando roupa na beira de um rio. Maria chega e as beatas a seguem para rezar pela salvação e pela água.
As imagens são contemporâneas. O cantar de Maria continua ancestral. Há uma tensão entre o canto de Maria e as imagens da vida prosaica da cidadezinha dos dias de hoje.
José Araújo nos diz que "na cultura sertaneja não se separa o mundo dos sonhos e das representações, da realidade. Frequentei pessoas que tiveram visões da Virgem, de Santos, de monstros, ou que ouviram vozes divinas... Essas vivências estão perfeitamente integradas à vida cotidiana e passam a fazer parte de uma concepção do mundo."
A narrativa do filme também se materializa para os ouvintes enquanto ela é "cantada" e passa a ser verdade. Passa a ser vivência e experiência. Minha vivência.
Mais tarde, Maria canta o dia em que estava no sertão e viu um homem com uma cruz de Salomão na testa, vestido de couro em seu cavalo. Ele lhe mostrou o caminho e a luz. Esse homem, seu homem, é Antero.
Antero é "todos os homens, viveu muitas vidas e todos os sofrimentos. Atravessou dificuldades para chegar e lutar contra o Dragão da Maldade e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse".
Antero está velho e seco como a terra. Velho e seco como Maria. Como Maria, a mãe de Deus, esquecida.
O "Sertão das Memórias" conta a história da luta de Maria e Antero, no meio de uma disputa pelo bem mais caro do sertão: a água de um açude que está sendo desviada para as terras de um político local.
Dragões
Os personagens falam pouco, com exceção dos candidatos -dragões que vomitam um falatório eleitoral inútil- e, claro, os cegos cantadores que contam as mazelas do sertanejo e as atrocidades dos dragões.
"O povo calado vê tudo. A labuta diária faz parte da luta e os passos da sobrevivência transformam-se em atos heróicos e tragédias."
Antero profetiza o Apocalipse, a destruição do mundo verde de sua adolescência. Antero veio para lutar. Será derrotado.
Não importa que saibamos o final da história. Ela será cantada muitas e muitas vezes mais. Como a lírica de Hesíodo, ouvida pelos séculos.
A força das imagens do sertão de José Araújo nos assombra. Não há violência no filme. Mas há a triste contemplação do sertanejo vencido.
Horas depois da sessão de "Sertão das Memórias" fiquei sabendo quem é José Araújo: um sujeito simpático e suave. Saiu de Miraíma aos dez anos para estudar num seminário.
Em 73 ganhou uma bolsa de estudos e foi para a Califórnia, onde obteve os títulos de "bachelor" e "master of arts" em cinema pela San Francisco State University.
Foi técnico de som de vários filmes, entre eles "Salmonberries" e "Younger and Younger", ambos de Percy Adlon, bastante conhecido aqui no Brasil por "Bagdá Café". Produziu e dirigiu os documentários "Miserere Nobis" e "Salve Umbanda", e o drama "Uma Família Mexicana, 14 Anos Depois".
Todos tiveram distribuição em televisões americanas e européias. "Sertão das Memórias" é seu primeiro longa-metragem.

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