São Paulo, terça-feira, 4 de fevereiro de 1997 |
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Impressões sobre 'Sertão das Memórias'
TATA AMARAL
Dentro desse táxi estavam Araújo e Michelle Valladares, sua mulher e produtora do filme. Apresentações apressadas. Estamos indo ao cinema. É a primeira projeção do filme. Corta: estou numa sala de cinema. Na tela, uma longa panorâmica por uma parede literalmente coberta de fotos, novas e antigas, que termina por revelar um casal idoso, sentado e olhando para a câmera, vestido com o apuro de um dia de festas. Acordes decisivos interrompem a cena para dar lugar a uma imagem do sol se pondo em tempo real, com quatro homens a cavalo em contraluz. As cores são intensas, o plano é longo, tenho tempo para me lembrar do Apocalipse de São João e do plano final de "Terra em Transe". As vestes dos homens montados trazem elementos que misturam àquelas dos cangaceiros e dos cavaleiros medievais. Não posso ver muito, já disse, os cavaleiros estão na contraluz. Mas sua presença é impressionante. Sou literalmente catapultada, ao longo do plano, para um universo denso, mítico. Os letreiros vão se sobrepondo a essa imagem, mas eles não atrapalham meu mergulho. Nos créditos, reconheço dois nomes: fotografia de Antônio Luiz Mendes Soares e música de Naná Vasconcelos. Aaahhh! A música passa a nos transportar para um novo território: uma panorâmica pela linha do mar e do céu acaba por descortinar a mulher idosa da cena anterior em primeiro plano. Uma voz off, que José Araújo define como voz interior dos personagens, passa a recitar: "Tudo acontece no instante do mundo A soma de todos os meus momentos, Vivi anos após anos: andei estradas, subi montanhas, nadei mares. Rezei todos os rosários, senti a dor do pobre. Senti a fome apertando no meu estômago". Nesse momento, a câmera nos mostra a mulher em plano geral, a água ao fundo. Essa mulher se parece com Jesus Pescador. Uma "Ave Maria" começa a ser cantada baixo. A voz interior continua: "Quero contar minha passagem da vida através dos acontecimentos. E a contagem das minhas genuflexões frente ao Senhor e à Virgem Maria Santíssima. Aprendi a maternidade com a mãe de Deus. Com seu exemplo de abnegação e sacrifício por Jesus seu filho querido. Sigo minha viagem com abnegação e penitência. Sou Maria de todas as dores". Nesses primeiros momentos do filme, já me sinto onde o autor parece querer me colocar: num sertão diferente daqueles que eu havia visto em outros filmes (só conheço o sertão dos filmes). Estou no sertão das memórias de José Araújo. Penso em Hesíodo e na Teogonia: o poeta inicia o poema evocando as musas que vão cantar a história dos deuses. Aqui, nesse sertão, não há deuses nem heróis cheios de glória para cantar. Há a sensação -como havia na época em que os menestréis cantavam de cidade em cidade- de que o sertão é de verdade. Real e imaginário Não há limite entre o real e o imaginário, entre o real e o mítico. Nem entre eu e o sertão, nem entre Maria de hoje e a Maria que tem visões. A Maria que canta as dores do mundo é a mesma que se mostra formal na primeira cena do filme. É a mesma que se parece com Jesus Pescador. Maria segue cantando que encontrou beatas no rio Eufrates. Vejo mulheres lavando roupa na beira de um rio. Maria chega e as beatas a seguem para rezar pela salvação e pela água. As imagens são contemporâneas. O cantar de Maria continua ancestral. Há uma tensão entre o canto de Maria e as imagens da vida prosaica da cidadezinha dos dias de hoje. José Araújo nos diz que "na cultura sertaneja não se separa o mundo dos sonhos e das representações, da realidade. Frequentei pessoas que tiveram visões da Virgem, de Santos, de monstros, ou que ouviram vozes divinas... Essas vivências estão perfeitamente integradas à vida cotidiana e passam a fazer parte de uma concepção do mundo." A narrativa do filme também se materializa para os ouvintes enquanto ela é "cantada" e passa a ser verdade. Passa a ser vivência e experiência. Minha vivência. Mais tarde, Maria canta o dia em que estava no sertão e viu um homem com uma cruz de Salomão na testa, vestido de couro em seu cavalo. Ele lhe mostrou o caminho e a luz. Esse homem, seu homem, é Antero. Antero é "todos os homens, viveu muitas vidas e todos os sofrimentos. Atravessou dificuldades para chegar e lutar contra o Dragão da Maldade e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse". Antero está velho e seco como a terra. Velho e seco como Maria. Como Maria, a mãe de Deus, esquecida. O "Sertão das Memórias" conta a história da luta de Maria e Antero, no meio de uma disputa pelo bem mais caro do sertão: a água de um açude que está sendo desviada para as terras de um político local. Dragões Os personagens falam pouco, com exceção dos candidatos -dragões que vomitam um falatório eleitoral inútil- e, claro, os cegos cantadores que contam as mazelas do sertanejo e as atrocidades dos dragões. "O povo calado vê tudo. A labuta diária faz parte da luta e os passos da sobrevivência transformam-se em atos heróicos e tragédias." Antero profetiza o Apocalipse, a destruição do mundo verde de sua adolescência. Antero veio para lutar. Será derrotado. Não importa que saibamos o final da história. Ela será cantada muitas e muitas vezes mais. Como a lírica de Hesíodo, ouvida pelos séculos. A força das imagens do sertão de José Araújo nos assombra. Não há violência no filme. Mas há a triste contemplação do sertanejo vencido. Horas depois da sessão de "Sertão das Memórias" fiquei sabendo quem é José Araújo: um sujeito simpático e suave. Saiu de Miraíma aos dez anos para estudar num seminário. Em 73 ganhou uma bolsa de estudos e foi para a Califórnia, onde obteve os títulos de "bachelor" e "master of arts" em cinema pela San Francisco State University. Foi técnico de som de vários filmes, entre eles "Salmonberries" e "Younger and Younger", ambos de Percy Adlon, bastante conhecido aqui no Brasil por "Bagdá Café". Produziu e dirigiu os documentários "Miserere Nobis" e "Salve Umbanda", e o drama "Uma Família Mexicana, 14 Anos Depois". Todos tiveram distribuição em televisões americanas e européias. "Sertão das Memórias" é seu primeiro longa-metragem. Texto Anterior: Paralelas destacam Pabst, Sokurov e Kim Novak Próximo Texto: 'Companheiro' é representante nacional Índice |
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