São Paulo, terça-feira, 4 de fevereiro de 1997
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Política e fé

ANDRÉ LARA RESENDE

Um militante venezuelano, ao se encontrar pela primeira vez com Che Guevara, confessa ter sentido vertigens. Che o repreende: um revolucionário não tem vertigens! Constrangido, o jovem militante procura mudar de assunto e lhe passa o exemplar da revista "Temps Modernes" que trazia no bolso. Um artigo, "O castrismo e a longa marcha da América Latina", desperta-lhe a atenção. O exemplar é imediatamente expropriado.
Alguns meses mais tarde, traduzido pelo próprio Che, o artigo é entregue a Fidel Castro, que decide convidar o autor para uma visita a Cuba.
Foi assim que Régis Debray se viu, algum tempo depois, enviado à Bolívia para preparar o caminho de Guevara.
Foi como antigo companheiro de Guevara que Debray, ao sair da prisão, foi recebido por Salvador Allende em 1971. Foi como portador de uma mensagem de Allende que Debray conheceu Mitterrand em 1972 e foi como um suposto conhecedor do Terceiro Mundo que Mitterrand, presidente eleito em 1981, o levou para o ministério.
Tudo se encadeia, suspenso num gesto ínfimo, afirma Debray em seu último livro, "Loués soient nos seigneurs", louvados sejam os nossos senhores -uma educação política.
Debray perdeu a fé no ideal revolucionário de esquerda que fascinou toda uma geração. O paralelo entre a fé religiosa e a fé revolucionária permeia todo o seu depoimento.
Mais do que qualquer argumento intelectual, foram os cantos revolucionários que fizeram-no sentir a ligação lírica entre os povos e os tempos. Cantos que introduziam os convertidos nos santos mistérios da nova igreja, a começar pelo dogma que na fé juvenil de Debray comandava todos os outros: a invencibilidade dos vencidos.
O relato da experiência cubana, do treinamento de guerrilha à melancólica realidade do socialismo burocrático, é impressionante.
O ritmo insuportavelmente lento dos atos mais simples, as esperas infindáveis, o culto à personalidade do líder, a importância dos serviços de informação e espionagem, a valorização da paranóia, o prazer jansenista do anonimato, a imunidade da cultura oral, os círculos concêntricos de conspiração -um implacável retrato vivido.
Fidel Castro, transformado de companheiro inquieto e audacioso em chefe-todo-poderoso de um sistema de governo hierarquizado, cerimonioso, que se desloca em Mercedes blindadas e na presença de quem deve-se manter dez passos de distância e os olhos baixos.
Che Guevara, o jovem franciscano que queria cuidar dos leprosos no Peru, o jovem que representou o ideal revolucionário movido por um profundo sentimento de amor ao próximo, que termina por fazer de seu testamento um grito fúnebre de defesa do ódio: "O ódio eficaz, que faz do homem uma violenta, seletiva e fria máquina de matar".
Engana-se quem tomar o livro de Debray por um mero libelo acusatório das esquerdas marxistas revolucionárias. Debray perdeu a fé, mas reconhece que, ainda hoje, ao ser chamado de "companheiro", algo nele vibra, intacto, com o frescor de há 40 anos. Seu livro é um depoimento pessoal, uma reflexão melancólica sobre a perda da importância, do encanto, dos projetos de sociedade, dos programas de governo, a simples menção dos quais hoje nos faz sorrir sarcasticamente.
Trata-se de um comovente lamento sobre a morte da grande política.

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