São Paulo, sexta-feira, 7 de fevereiro de 1997
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Compras nos sistemas públicos de saúde

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

Com essa união de vendedor sem-vergonha e burrocrata corrupto, compramos o mais caro e o menos eficiente
VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Há um antigo brocardo norte-americano que resume com perfeição os sistemas de licitação nas nossas instituições ligadas à saúde pública, referentes às três maneiras de comprar qualquer coisa: o jeito certo, o errado e o público, que é, de longe, o pior de todos.
Tudo o que é comprado obedece a leis de licitação, que, teoricamente, fazem com que seja dado um preço mínimo e, igualmente, garantem a todos os que têm condição acesso igualitário ao mercado de fornecimento a essas organizações. A doutrina é essa, mas a prática é outra história.
As leis licitatórias dão a nítida impressão de terem sido feitas para maior conforto e facilidade dos envolvidos. Se no papel as coisas figuram em ordem, tudo bem. O mundo real, infelizmente, nem sempre está em harmonia com a papelocracia. Os defeitos não são das leis em si, mas dos malandros que as contornam e de determinados burocratas, que as aplicam em detrimento do interesse público, por burrice ou má-fé.
Exemplos abundam. Na última compra da vacina tríplice pelo nosso governo, foi exigida a entrega de quantidade absurda de vacinas, para um estoque enorme. O preço não foi lá essas coisas, mas apenas alguns concorrentes disseram que podiam entregar tudo aquilo, e quem ganhou foi firma cujo endereço comercial tinha vínculo com bares e restaurantes, o que, no mínimo, deveria ter despertado alguma desconfiança. Essa empresa representava laboratório chinês, e ninguém avaliou a qualidade do imunizante que ela se propunha a entregar e conferiu se tinha capacidade de fazer o que dizia. Naturalmente, após ganhar a concorrência, simplesmente não entregou.
Existem muitos truques nas licitações: uns entram apenas para atrapalhar a concorrência, e outros fazem cartéis antes, decidindo quem vai vencer naquela vez, além dos que preparam editais muito específicos, a fim de só permitir que certa firme ganhe; são concorrência para porco cujo rabo dê quatro voltinhas em sentido anti-horário, da esquerda para a direita. O número de sacanagens factíveis é imenso, e não temos a menor intenção de divulgar todas.
De outro lado, a burocracia pública, que ganha tão pouco, chega a vender facilidades para evitar as dificuldades que ela mesma inventa, e, com essa união maldita de vendedor sem-vergonha e burrocrata corrupto, conseguimos neste Brasil, em serviço público, comprar quase que invariavelmente o mais caro e o menos eficiente.
Ninguém se preocupa com a qualidade dos insumos ou do que é contratado, e, pior do que isso, vários cidadãos militam dos dois lados, ou seja, são ao mesmo tempo os fornecedores das utilidades ou serviços requeridos e escolhedores deles na função pública. Adivinhem quem ganha as concorrências, nesses tipos de casos.
Só vemos uma maneira de acabar de uma vez com esse desastre, que ajuda a inviabilizar o serviço público. É fundamental fiscalizar a gestão pública, mas é importante conceder alguma autonomia a quem usa o material, a quem faz as compras, colocando a sociedade na fiscalização rigorosa das importantes atividades-fins.
Precisamos fugir do modelo tradicional luso-brasileiro, no qual o papel é mais importante do que o fato, e cair no anglo-saxônico. Nos EUA, pelo menos, os serviços de saúde compram bem. O objeto de piadas lá é o Pentágono, onde há a nítida impressão de que pessoas da seção de compras fizeram curso de pós-graduação nos nossos órgãos oficiais da área da saúde.

Vicente Amato Neto, 67, infectologista, é professor titular do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Jacyr Pasternak, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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