São Paulo, sexta-feira, 14 de fevereiro de 1997
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Um ajuste intelectual

RICARDO MUSSE

um livro publicado por um intelectual no governo deixa sempre uma dúvida no ar: quem está falando, o ministro ou o economista e cientista político? Ou, numa terminologia mais afeita aos atuais círculos palacianos, qual vocação predomina aí, a política ou a ciência?
É praticamente impossível formular qualquer juízo, ou mesmo ler descuidadamente o novo livro de Bresser Pereira, atual titular do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, sem tangenciar esse ponto. Tomemos, por exemplo, o Plano Real, que funciona como uma espécie de ímã sinalizador das diversas posições do espectro político e intelectual brasileiro: como entender a parcimônia com que o sempre prolixo Bresser trata o plano de estabilização do presidente Cardoso, sem que aflore a questão de para quem e por quem o livro foi escrito?
Apesar de o livro se apoiar numa série de artigos, publicados num período que se estende de 1987 a 1995, não há dúvida de que as adaptações pelas quais Bresser procurou dar unidade e coerência ao texto foram fortemente impactadas pelo Plano Real. O próprio tom do título, que avalia positivamente a "reforma" do Estado no Brasil, já o indica. No entanto, o assunto -uma interpretação da crise econômica da América Latina nos anos 1980 e das estratégias aptas para superá-la- exige um complemento óbvio, espantosamente ausente no livro: uma avaliação da eficiência do Real para debelar definitivamente a crise fiscal do Estado.
É claro que uma das pré-condições do Plano Real foi um ajuste fiscal. Mas, uma vez que o déficit público não cessa de crescer, terá sido esse ajuste insuficiente? Bresser não palpita sobre isso, nem sobre a polêmica do câmbio, nem sobre nenhuma das questões sobre as quais se concentra o debate econômico no Brasil hoje. Seu livro, porém, longe da seção em que relata brevemente em tom imparcial e jornalístico a trajetória do Real (págs. 262-267), acumula pistas no mínimo intrigantes para um leitor com inclinação detetivesca.
Ao listar o conjunto de premissas de um ciclo econômico populista, Bresser descreve pelo menos dois pontos -supervalorização da taxa de câmbio para reduzir a inflação e aumentar o consumo, promovendo importações e restringindo exportações; manutenção de tarifas estatais artificialmente baixas- que se encaixam no figurino do Plano Real. Embora, significativamente, nunca seja mencionada, algumas farpas, aqui e ali, parecem destinadas à equipe econômica. Afinal, quem, além de Gustavo Franco, andou afirmando por aí que o Estado não foi importante na industrialização do Brasil? Na maioria dos casos, porém, tudo fica muito nebuloso. Quando elogia o Chile por não ter privatizado as suas minas de cobre, Bresser está criticando a privatização da Vale do Rio Doce? Seu projeto de Estado social-democrático não conteria uma crítica velada ao descaso governamental com a saúde, a educação e a tecnologia?
O pomo da discórdia mais visível, porém, reside na tese central do livro: a crise econômica seria fundamentalmente uma crise fiscal do Estado causada não apenas pela prática recorrente de uma política redistributivista que Bresser chama de "populismo econômico", mas principalmente pelo tamanho excessivo (de estoque e de fluxo) da dívida externa. Mais, apesar da crença generalizada de que o problema foi superado, a alta carga fiscal representada pelo pagamento de juros "está reduzindo a taxa de crescimento dos países devedores e continuará a fazê-lo por muitos anos", impedindo um aumento nos padrões de vida da América Latina.
Na elaboração dessa tese convergiram, de maneira proveitosa, a prática do ministro da Fazenda no governo Sarney (1987) e o trabalho intelectual assentado em um problema real (a origem da lógica perversa da estagnação brasileira nos anos 80). Mas, quem a enuncia nesse livro? O intelectual atacado de "fracassomania" e "malaise" ou o político que oportunisticamente se posiciona como estepe para a equipe econômica ou talvez -já que afirma que o Estado sobrevive tomando dinheiro emprestado daqueles que deveriam estar pagando impostos- como candidato a ministro em um governo de esquerda?
Provavelmente, nem um nem outro. Isso deve ser atribuído a um deslize, a resquícios, lapsos, que a atualização dos textos não extirpou completamente. A posição oficial do ministro e do intelectual Bresser Pereira está exposta no último capítulo do livro, um dos poucos escritos originalmente para este volume.
O governo Cardoso (e inclusive o seu plano de estabilização) aparece como sustentáculo de um novo pacto político, "pragmático" e "social-democrático", um "pacto de modernização sustentado por uma ampla coalizão de classe". "Social-democrata" porque o presidente Cardoso mostrou que uma mistura de liberalismo social de direita com o social-liberalismo de centro é capaz de mobilizar um grande espectro político. "Pragmático" porque um pacto desses não abrange a todos: perdem os burocratas das empresas estatais, a baixa burocracia (baixo clero?), os empresários outrora superprotegidos (nacionalistas?) "e continuarão a perder os marginais sem terra, sem teto, sem educação" (os de sempre). Tal "modernização", "é a transição de valores e práticas arcaicas para modernos".
Há mais que sabedoria acaciana (ou cinismo, como queira o leitor) nessa última frase. Talvez resida aí o cerne do livro.
A outra pedra de toque, além do Real, capaz de nos orientar na indagação acerca da autoria e do público-alvo, são os vínculos de "Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil" com a numerosa e importante obra anterior do próprio Bresser: de que modo esse livro se refere ou remete aos anteriores?
A primeira vertente auto-remissiva parece elaborada por uma injustiçada vítima da história das idéias no Brasil. Preocupado em fixar o seu lugar na história, ora Bresser se apresenta como um ignorado pioneiro defensor da teoria da inflação inercial (único ponto, segundo ele, em que a teoria econômica brasileira deu uma contribuição mundial), ora como o antecessor mais remoto, antes de Collor, da preocupação atual (Plano Real?) com o ajuste fiscal.
Mas, em se tratando de Bresser, sem qualquer paradoxo, a outra linhagem, predominante, apresenta a sua trajetória como uma transição intelectual e política para a modernidade: um "ajustamento intelectual" ao qual se submeteu, ao longo dos anos 80 e 90, com raras e "deploráveis" exceções, toda a elite governamental, política e econômica da América Latina.
Equivalente no plano intelectual ao processo de reformas econômicas e do Estado, esse "ajuste intelectual" implica sobretudo numa releitura da nossa história recente. 64 foi um equívoco porque a direita que assumiu o poder não era moderna como apregoava, mas herdeira do "velho nacional-desenvolvimentismo". As forças que gestaram a transição para a democracia e assumiram o poder em 1985 (nas quais Bresser e Cardoso foram figuras proeminentes) não passavam de uma "coalizão populista". Collor foi uma "personalidade dividida e instável: em algumas ocasiões, foi totalmente incapaz de discernir a esfera pública de seus interesses privados; em outras, demonstrou uma visão corajosa de como modernizar o Brasil, que lhe permitiu, com o ajuste fiscal, a liberalização comercial e a privatização, mudar a agenda do país".
Essa "reforma intelectual e moral", a transição do ideal nacional-desenvolvimentista para um ideário "social-liberal" é o verdadeiro assunto do livro. Com isso fica claro que o seu público-alvo primordial são os intelectuais. A "autocrítica", a correção dos laivos de independência doutrinária, a revisão da história, mais do que obediência ao Grande Timoneiro (o mercado, Cardoso?), surgem como um "exemplo regenerador" a ser seguido.
Bresser assume explicitamente que falta converter (ajustar) ainda um setor indispensável para o êxito dessa "nova" coalizão: a burocracia estatal. Assim, "Crise Econômica e Reforma do Estado no Brasil" deve ser visto sobretudo como o "livro branco do administrador moderno".
Para os antigos admiradores da obra de Bresser, talvez fosse o caso de inserir na edição uma tarja de alerta -apesar da má qualidade do material e de flagrantes incoerências, trata-se de mais uma peça publicitária sem licitação da gestão (ave César) Cardoso.

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