São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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O populismo dos sábios

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Ao anunciar a mudança da banda "larga", o governo reafirmou, ao mesmo tempo, a manutenção da política cambial. As autoridades informaram aos mercados que estão descartadas quaisquer "bruxarias" destinadas a estimular as exportações. As vendas externas, como é de conhecimento público, galopam a passos de Rocinante, aquele esbelto corcel do Quixote.
Os encarregados de divulgar a sabedoria governamental sobre o tema esmeram-se em especulações sobre a natureza do padrão monetário e das paridades cambiais, num mundo de moedas fiduciárias. Fazem isso com o propósito de desqualificar como irrelevantes ou rematadas tolices as teses que invocam a idéia de "valorização" ou "desvalorização" das moedas.
Não há, dizem eles, valorização do real, senão um mera alteração de preços relativos entre a moeda nacional e as outras moedas, assim como mudam todos os dias as relações de preços entre os serviços do barbeiros e uma dúzia de bananas.
Nem os barbeiros nem os bananeiros estão sabendo que os seus produtos ou serviços vêm sendo usados como referência para denominar contratos ou como meio aceito universalmente para liquidá-los. Mas isso se deve certamente à informação imperfeita.
Conversa vai, conversa vem, as previsões para o déficit comercial convergem para algo em torno de US$ 10 bilhões, enquanto os prognósticos de desempenho da conta corrente avançam para a casa do US$ 30 bilhões negativos.
Tudo isso não tem a menor importância, garantem os sábios. O déficit comercial revela o vigor dos investimentos e da renovação tecnológica. Inevitavelmente, logo adiante, o déficit será substituído por um confortável superávit, graças aos ganhos de produtividade e consequente aumento da competitividade das exportações.
O elevado déficit de transações correntes, ao invés de revelar alta vulnerabilidade, mostra, isto sim, a confiança dos mercados financeiros na solidez do programa de estabilização. Além disso, aí estão as reservas de US$ 57 bilhões para amortecer quaisquer choques (que, é óbvio, não vão ocorrer).
Ninguém pode acusar a equipe econômica de estar desapercebida de argumentos. É de se temer, no entanto, que a lógica desse discurso otimista não seja capaz de resistir à teimosia da história, que irracionalmente vem registrando desfechos desagradáveis para tais peripécias cambiais, apoiadas num ciclo de financiamento externo privado.
Vamos torcer para que o destino nos impeça de presenciar o fenômeno da transfiguração apontado por Galbraith, em sua conhecida história dos fiascos financeiros: depois da crise, todos os gênios da finanças são bestas quadradas. Mas seria um engano restringir a análise desses episódios, que, aliás, se repetem monotonamente, às oscilações de prestígio do QI dos membros do governo.
Na América Latina tem sido difícil resistir à adoção de estratégias de "plata dulce", quando o dinheiro externo acorre em avalanche. Uma dose de coragem muito maior seria necessária para reverter a euforia consumista e importadora no auge da festa. Ainda mais: estimulada pelo câmbio favorável, cresce rapidamente a disposição dos nacionais para se endividar em moeda estrangeira.
Como é visível a olho nu, a mudança no regime cambial teria custos políticos muito elevados para um governo que se elegeu e sustenta sua popularidade nos ombros do dólar barato. O resto é populismo de esquerda.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, 54, economista, é professor-titular da Unicamp (Universidade de Campinas).

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