São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 1997
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O cotidiano extraordinário

JOSÉ LUIS SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM LONDRES

Graham Swift é um escritor da intimidade. Seu universo são os costumes ou tudo o que vive, morre e às vezes fica como memória no dia-a-dia do século 20. "Quero encontrar o extraordinário no ordinário", diz. No final do ano passado, seu último romance, "Last Orders", venceu o Booker Prize, o prêmio literário mais importante do Reino Unido. A Companhia das Letras publicou dois de seus livros no Brasil, "Terra D'água" e "Fora Deste Mundo", e pretende lançar "Last Orders" em 1998.
"Esse não é um de seus dias comuns", fala Ray para si mesmo na primeira frase de "Last Orders". É um dia incomum na vida de gente comum, como ele -o dia em que quatro amigos viajam para realizar a última vontade do açougueiro Jack Dodds: ter suas cinzas dispersas no mar inglês. Só a viúva, Amy, se recusa, por motivos que apenas ela sabe, a cumprir a ordem do marido morto. Como em "Fora Deste Mundo", a história aparece no cruzamento das perspectivas de múltiplos personagens-narradores. Cada um reconstitui -de modo às vezes realista, às vezes imaginário- um mesmo evento, e assim aparece a narrativa.
Swift apareceu em 1983, com "Terra D'água", numa cena literária efervescente. Naquela década, escritores britânicos de fora da Inglaterra ganharam notoriedade e geraram controvérsia, escrevendo em inglês, ao mesmo tempo em que uma nova geração de ingleses era reconhecida. "Tínhamos um mix muito saudável", disse Swift em entrevista à Folha em Londres, cidade onde nasceu, em 1949.
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Folha - "Last Orders" trata, entre outras coisas, da complexidade da vida comum. Há alguma razão especial para a escolha desse assunto?
Graham Swift - A vida comum é bastante complicada. Penso que eu mesmo sou uma pessoa comum. Sempre reconhecemos isso em nós mesmos, mas nem sempre partilhamos, ou mesmo admitimos, esse reconhecimento. Há uma tendência a simplificar a vida comum. Há um paradoxo nisso, nenhuma vida é ordinária. Quero encontrar o extraordinário no ordinário.
Folha - A cena é extraordinária em "Last Orders", não os personagens. Talvez isso o torne um livro bastante irônico.
Swift - Penso que minha obra é séria, mas "Last Orders" em especial é um livro cômico. Embora fale sobre vida e morte, é um livro engraçado. O humor e a comédia são elementos de minha obra. Não penso que comédia e seriedade não possam viver juntas.
Folha - "Fora Deste Mundo" é sobre os laços entre a vida privada dos personagens e os eventos do século 20. O sr. pode comentar o modo como vê essa ligação?
Swift - Vivemos num século em que muitas gerações aprenderam, às vezes de modo assustador e cruel, que o pequeno mundo, o mundo da intimidade, não pode ser separado do grande mundo, o mundo dos grandes eventos. Isso provavelmente tem a ver com tecnologia, com comunicação. Não podemos mais viver isolados como há cem anos. Temos cada vez mais de reconhecer que nossas vidas privadas estão diretamente conectadas a eventos públicos. É claro que as duas grandes guerras têm muito a ver com o que falo. Guerras, de qualquer duração, afetam a vida civilizada de modo muito direto e assustador.
Folha - "Terra D'água" contém reflexões sobre a narrativa, a história e o próprio conhecimento dos acontecimentos passados. Há veracidade na ficção?
Swift - Não sei. Como escritor, posso formular questões e ver a confusão -eu penso que a vida é de fato muito confusa-, mas não tenho respostas. Não sei onde está a verdade. Muito de minha obra diz respeito a que ninguém realmente sabe o que é a verdade. Ninguém realmente sabe o que a realidade é. Apenas concordamos acerca de certas noções da realidade. É claro que se supõe que a história deva ser uma rememoração do que realmente aconteceu -mas nunca realmente sabemos. Essa é a ambiguidade do conhecimento: ele é incerto. Ainda assim, formular questões é sempre uma coisa muito boa de se fazer -mesmo que não se possa saber a verdade.
Folha - Alguns escritores, como V.S. Naipaul, afirmaram há pouco o fim do romance como gênero. O que o sr. pensa disso?
Swift - Eu não acredito, nem poderia crer nisso, fazendo o que faço. O livro está em forte competição com outras formas de entretenimento -telas de computador etc.-, isso é um fato a ser encarado. Mas penso que o livro, mesmo como peça de tecnologia, ainda é uma coisa maravilhosa. Ele contém informações que podem ser acessadas em qualquer lugar. Não precisa de sistemas elétricos e baterias, pode ser colocado no bolso. É uma forma maravilhosa de preservar o que está dentro da mente.
Folha - Como o sr. vê a literatura inglesa atual? E sua relação com o que se faz no resto do mundo?
Swift - Não sou a pessoa certa para julgar em termos gerais o que se faz aqui ou ali. Esse é o trabalho do crítico. O que posso dizer é que algo especial aconteceu neste país nos anos 80. Havia em minha geração muitos novos talentos emergindo ao mesmo tempo. As pessoas construíram teorias a respeito disso. Penso que não houve razão alguma. Os autores estavam isolados, às vezes não eram reconhecidos -e então o foram, todos, ao mesmo tempo, no meio dos anos 80. Foi um tempo de energização para a ficção inglesa. Agora, no final dos anos 90, as pessoas procuram pela próxima geração. Não tem sido fácil definir essa geração. Há jovens talentos, mas talvez eles levem mais tempo para emergir.
Folha - Por quê?
Swift - Nos anos 80, havia no público e entre os editores uma nova excitação pela ficção e pela leitura. Nos anos 60 e 70, o drama era atrativo, nos 80 a ficção tornou-se atrativa. A ficção continua forte, mas não acho que aquela excitação permaneça a mesma. Em alguns sentidos, o jornalismo tornou-se mais excitante. Ter uma carreira em jornalismo tornou-se mais significativo do que ter uma carreira como romancista. Isso tudo diz respeito a esse país.
Outra coisa é que nos anos 80 havia aqui muitas pessoas nascidas fora da Inglaterra escrevendo em inglês. Eram pessoas que tinham a experiência de outros países. Tínhamos um mix muito saudável. A literatura inglesa, por causa desse mix, estava muito mais conectada ao resto do mundo do que nos anos 60 ou 70. Em um país famoso por ser insular, éramos, em termos literários, muito pouco insulares. Minha geração teve muita sorte. Mas posso dizer, sem falsa modéstia, que fomos mesmo uma geração muito talentosa.

Onde encomendar: "Last Orders", de Graham Swift (Picador, Londres, 295 págs., 15,99 libras) pode ser encomendado à Livraria Cultura (tel. 011/285-4033) ou à Livraria Marcabru (tel. 021/294-6396).

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